quinta-feira, 22 de setembro de 2016

Ângelo de Lima: Olhos de Lobas


Teus olhos lembram círios
Acesos n'um cemitério...
Dr. Rogério de Barros

Têm um fulgor estranho singular
Os teus olhos febris... Incendiados!...

Como os Clarões Finais... - Exaustinados
Dos restos dos archotes, desdeixados...
— Nas criptas d'um Jazigo Tumular!...

— Como a Luz que na Noute Misteriosa
— Fantástica - Fulgisse nas Ogivas
Das Janelas de Estranho Mausoléu!...

— Mausoléu, das Saudades do Ideal!...

— Oh Saudades... Oh Luz Transcendental!
— Oh memórias saudosas do Ido ao Céu!...

— Oh Pérpetuas Febris!... - Oh Sempre Vivas!...
— Oh Luz do Olhar das Lobas Amorosas!... 




quarta-feira, 21 de setembro de 2016

Manoel de Barros: O apanhador de desperdícios


Uso a palavra para compor meus silêncios.
Não gosto das palavras
fatigadas de informar.
Dou mais respeito
às que vivem de barriga no chão
tipo água pedra sapo.
Entendo bem o sotaque das águas
Dou respeito às coisas desimportantes
e aos seres desimportantes.
Prezo insetos mais que aviões.
Prezo a velocidade
das tartarugas mais que a dos mísseis.
Tenho em mim um atraso de nascença.
Eu fui aparelhado
para gostar de passarinhos.
Tenho abundância de ser feliz por isso.
Meu quintal é maior do que o mundo.
Sou um apanhador de desperdícios:
Amo os restos
como as boas moscas.
Queria que a minha voz tivesse um formato
de canto.
Porque eu não sou da informática:
eu sou da invencionática.
Só uso a palavra para compor meus silêncios.


Manoel de Barros. 

terça-feira, 20 de setembro de 2016

Manoel de Barros: Prefácio


Assim é que elas foram feitas (todas as coisas) —
sem nome.
Depois é que veio a harpa e a fêmea em pé.
Insetos errados de cor caíam no mar.
A voz se estendeu na direção da boca.
Caranguejos apertavam mangues.
Vendo que havia na terra
Dependimentos demais
E tarefas muitas —
Os homens começaram a roer unhas.
Ficou certo pois não
Que as moscas iriam iluminar
O silêncio das coisas anônimas.
Porém, vendo o Homem
Que as moscas não davam conta de iluminar o
Silêncio das coisas anônimas —
Passaram essa tarefa para os poetas.
Manoel de Barros. Concerto a céu aberto para solo de aves. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1991.  

Adrienne Rich

Boundary

What has happened here will do
To bite the living world in two,
Half for me and half for you.
Here at least I fix a line
Severing the world’s design
Too small to hold both yours and mine.
There’s enormity in a hair
Enough to lead men not to share
Narrow confines of a sphere
But put an ocean or a fence
Between two opposite intents.
A hair would span the difference.


Adrienne Rich. Selected Poems. London:  The Hogarth Press,  1967.

Robert Frost: The Rose Family


The rose is a rose,
And was always a rose.
But the theory now goes
That the apple's a rose,
And the pear is, and so's
The plum, I suppose.
The dear only knows
What will next prove a rose.
You, of course, are a rose -
But were always a rose. 


Robert Frost

Robert Frost: The road not taken


Two roads diverged in a yellow wood,
And sorry I could not travel both
And be one traveler, long I stood
And looked down one as far as I could
To where it bent in the undergrowth;

Then took the other, as just as fair,
And having perhaps the better claim
Because it was grassy and wanted wear,
Though as for that the passing there
Had worn them really about the same,

And both that morning equally lay
In leaves no step had trodden black.
Oh, I kept the first for another day!
Yet knowing how way leads on to way
I doubted if I should ever come back.

I shall be telling this with a sigh
Somewhere ages and ages hence:
Two roads diverged in a wood, and I,
I took the one less traveled by,
And that has made all the difference. 



Robert Frost

William Carlos Williams

This Is Just To Say
I have eaten
the plums
that were in
the icebox
and which
you were probably
saving
for breakfast
Forgive me
they were delicious
so sweet
and so cold.


William Carlos Williams

segunda-feira, 19 de setembro de 2016

Nuno Rocha Morais

Um método
(exercício pongiano)

Insinua-te como a água em todos os interstícios de uma vida e, onde não há espaço, introduz-te à força de uma caricia subtil e paciente, acumulando-se numa intensidade sem violência. Sim, como a água, vigiando sempre a tua própria salinidade, a concentração de calcário – a água calcária é a mais dogmática, sufoca, obstrui. Conheces bem os perigos do calcário no coração. A água que fores não deve ser mais do que uma destilação essencial de ti, não uma abstracção, uma construção putativa. Qualquer substância estranha, como a náusea, a ira, a angústia, lhe irão desfigurar a transparência, turvar o curso – e não te conhecerás, não te reconhecerão. Serás salobro. É certo que já se avistaram águas iradas – mas, repara, nunca de moto próprio: sempre pela instigação de sismos, pela sedição de chuvas, lamas, troncos, sempre pela violência de um excesso terceiro, de um ritmo que se subverte. E, quanto à angústia, é absurdo tentar aplicá-la, misturá-la na água. É claramente um elemento estranho, que fende as águas como o peso intruso de uma pedra. E, mesmo assim, repara que a água acolhe a pedra, não a repudia; envolve-a, embala-a, absorve a sua violência, anula-a, sem a repelir, sem ripostar; amortece a sua queda, deposita-a, delicadamente, num qualquer fundo, e segue o seu caminho – sempre sem angústia, sem ira. Poderás tanto? Muitas mais lições deves à água. Repara como, prisioneira embora de leis inflexíveis, desfruta da liberdade que possui. Repara como a água não se deprime, nem se deixa comprimir, como se esquiva. O meu próprio discurso se quereria de água, mas é uma retórica de pedra. Perdoa-me por isso. Mas sê água; vê como, fluindo ou refluindo, segue convictamente essa direcção – pelos caprichos da terra, é certo, mas vê como se conforma sem a aparência de submissão, sem que realmente seja submissão. Aproveitará qualquer descuido, qualquer falha, para se evadir. Mais – é sempre ela própria, independentemente da sua quantidade ou do recipiente ou do estado, mas não se fecha, hermética, sobre si própria, recusando todo o contacto ou mistura. Molda-se ao espaço, mas preenche-o, inteira, resolutamente – nada recusa do que lhe é concedido. É indiferente à sua própria grandeza. Se não fosse contaminá-la, diria que é,  com igual convicção, um charco ou um oceano. E vê, por exemplo, como ilumina: num copo de água ou num rio, sem possuir luz própria. Sê – e era isto que te queria dizer desde o princípio – amante como a água. Ama como a água, com amor de água. Insinuando-te. Inunda o estanque.


Nuno Rocha Morais, Últimos Poemas.

Nuno Rocha Morais


Brinquei, pela calada, em sítios proibidos-
Na eira, no coradouro, perto das orquídeas.
Na eira, quando o milho era ouro,
Perto das orquídias, flores difíceis e petulantes,
No coradouro, quando a roupa branca
Secava à brandura do ar,
Que depois se estendia ao corpo.
E então tinhamos, eu e os meus primos, o perfume dos anjos,
Como nos chamavam, com a desrazão do amor,
Avós e tias. Mas os anjos,
Se outros há para além da nossa melhor natureza,
Brincam em sítios proibidos,
Como nós no coradouro,
Onde também jaziam os ossos de cães amados,
Tentam atravessar a pé o pousio das águas,
Sem saberem que o rio pode ser
Um mal tranquilo, não menos predador.
Apenas sofrem de nódoas negras sem metafísica
E de um leve tremor da primeira sombra sexuada.
Em breve começamos a roubar fruta e beijos,
brincando sempre à socapa em sítios proibidos,
mas incapazes de conter o alvoroço-
Então avós e tias chamavam-nos
Demónios, diabretes, mafarricos.
A infância começava a ser uma impostura,
Não sabíamos ainda, não ainda,
Que já tinhamos sido expulsos do paraíso.


Nuno Rocha Morais. Últimos Poemas.

domingo, 18 de setembro de 2016

Clarice Lispector


Custa-me a crer que eu morra. Pois estou borbulhante numa frescura frígida. Minha vida vai ser longuíssima porque cada instante é. A impressão é que estou por nascer e não consigo.
Sou um coração batendo no mundo.
Você que me lê que me ajude a nascer.



Clarice Lispector, Água Viva.

Clarice Lispector

Mas eu percebia um primeiro rumor como o de um coração batendo debaixo da terra. Colocava quietamente o ouvido no chão e ouvia o verão abrir caminho por dentro e o meu coração embaixo da terra – “nada! Eu não disse nada!” – e sentia a paciente brutalidade com que a terra fechada se abria por dentro em parto, e sabia com que peso de doçura o verão amadurecia cem mil laranjas  e sabia que as laranjas eram minhas. Porque eu queria.

 Clarice Lispector, Água Viva.

Rainer Maria RIlke

É dia ainda no terraço
Sinto uma alegria nova:
se mergulhasse a mão na tarde
poderia espalhar, em cada viela,
oiro do meu silêncio.
Estou agora tão longe do mundo!
Com seu brilho da tarde, orlo
a minha solidão grave.
É como se alguém viesse
devagar roubar-me o nome
tão manso, que nem vergonha
sinto, e sei: já o não preciso.

Rainer Maria Rilke

Rúben Darío: Canción de Otoño en Primavera




Juventud, divino tesoro,
¡ya te vas para no volver!
Cuando quiero llorar, no lloro...
y a veces lloro sin querer...

Plural ha sido la celeste
historia de mi corazón.
Era una dulce niña, en este
mundo de duelo y de aflicción.

Miraba como el alba pura;
sonreía como una flor.
Era su cabellera obscura
hecha de noche y de dolor.

Yo era tímido como un niño.
Ella, naturalmente, fue,
para mi amor hecho de armiño,
Herodías y Salomé...

Juventud, divino tesoro,
¡ya te vas para no volver!
Cuando quiero llorar, no lloro...
y a veces lloro sin querer...

Y más consoladora y más
halagadora y expresiva,
la otra fue más sensitiva
cual no pensé encontrar jamás.

Pues a su continua ternura
una pasión violenta unía.
En un peplo de gasa pura
una bacante se envolvía...

En sus brazos tomó mi ensueño
y lo arrulló como a un bebé...
Y te mató, triste y pequeño,
falto de luz, falto de fe...

Juventud, divino tesoro,
¡te fuiste para no volver!
Cuando quiero llorar, no lloro...
y a veces lloro sin querer...

Otra juzgó que era mi boca
el estuche de su pasión;
y que me roería, loca,
con sus dientes el corazón.

Poniendo en un amor de exceso
la mira de su voluntad,
mientras eran abrazo y beso
síntesis de la eternidad;

y de nuestra carne ligera
imaginar siempre un Edén,
sin pensar que la Primavera
y la carne acaban también...

Juventud, divino tesoro,
¡ya te vas para no volver!
Cuando quiero llorar, no lloro...
y a veces lloro sin querer.

¡Y las demás! En tantos climas,
en tantas tierras siempre son,
si no pretextos de mis rimas
fantasmas de mi corazón.

En vano busqué a la princesa
que estaba triste de esperar.
La vida es dura. Amarga y pesa.
¡Ya no hay princesa que cantar!

Mas a pesar del tiempo terco,
mi sed de amor no tiene fin;
con el cabello gris, me acerco
a los rosales del jardín...

Juventud, divino tesoro,
¡ya te vas para no volver!
Cuando quiero llorar, no lloro...
y a veces lloro sin querer...
¡Mas es mía el Alba de oro!

Rúben Darío.

quarta-feira, 14 de setembro de 2016

Gonçalves Dias: Canção do Exílio


Minha terra tem palmeiras,
Onde canta o Sabiá;
As aves, que aqui gorjeiam,
Não gorjeiam como lá.

Nosso céu tem mais estrelas,
Nossas várzeas têm mais flores,
Nossos bosques têm mais vida,
Nossa vida mais amores.

Em cismar, sozinho, à noite,
Mais prazer encontro eu lá;
Minha terra tem palmeiras,
Onde canta o Sabiá.

Minha terra tem primores,
Que tais não encontro eu cá;
Em cismar — sozinho, à noite —
Mais prazer encontro eu lá;
Minha terra tem palmeiras,
Onde canta o Sabiá.

Não permita Deus que eu morra,
Sem que eu volte para lá;
Sem que desfrute os primores
Que não encontro por cá;
Sem qu'inda aviste as palmeiras,
Onde canta o Sabiá.



Gonçalves Dias.

Murilo Mendes: Canção do Exílio


Minha terra tem macieiras da Califórnia
onde cantam gaturamos de Veneza.
Os poetas da minha terra
são pretos que vivem em torres de ametista,
os sargentos do exército são monistas, cubistas,
os filósofos são polacos vendendo a prestações.
A gente não pode dormir
com os oradores e os pernilongos.
Os sururus em família têm por testemunha a Gioconda.
Eu morro sufocado
em terra estrangeira.
Nossas flores são mais bonitas
nossas frutas mais gostosas
mas custam cem mil réis a dúzia.
 

Ai quem me dera chupar uma carambola de verdade
e ouvir um sabiá com certidão de idade!

Murilo Mendes

 Pré-história


Mamãe vestida de rendas
Tocava piano no caos.
Uma noite abriu as asas
Cansada de tanto som,
Equilibrou-se no azul,
De tonta não mais olhou
Para mim, para ninguém!
Cai no álbum de retratos.



Murilo Mendes.

Murilo Mendes


Cantiga de Malazarte


Eu sou o olhar que penetra nas camadas do mundo,
ando debaixo da pele e sacudo os sonhos.
Não desprezo nada que tenha visto,
todas as coisas se gravam pra sempre na minha cachola.
Toco nas flores, nas almas, nos sons, nos movimentos,
destelho as casas penduradas na terra,
tiro os cheiros dos corpos das meninas sonhando.
Desloco as consciências,
a rua estala com os meus passos,
e ando nos quatro cantos da vida.
Consolo o herói vagabundo, glorifico o soldado vencido,
não posso amar ninguém porque sou o amor,
tenho me surpreendido a cumprimentar os gatos
e a pedir desculpas ao mendigo.
Sou o espírito que assiste à Criação
e que bole em todas as almas que encontra.
Múltiplo, desarticulado, longe como o diabo.
Nada me fixa nos caminhos do mundo.


Murilo Mendes.
Partilhado a partir de Jornal de Poesia

sexta-feira, 9 de setembro de 2016

Adrienne Rich


I guess you're not alone I fear you're alone
There's, of course, poetry:
awful bridge rising over naked air: I first
took it as just a continuation of the road:
"a masterpiece of engineering
praised, etc." then on the radio:
"incline too steep for ease of, etc."
Drove it nonetheless because I had to
this being how- So this is how
I find you: alive and more


Adrienne Rich. Fox. New York: Norton, 2001.


domingo, 4 de setembro de 2016

Nuno Morais


A verdade é que prefiro não saber,
Sentir pode ser a pior das ingerências.
Prefiro fazer-me escasso,
Não comparecer, calar-me,
Estar apenas por engano,
Ser ignorado, embora custe.
Também eu não pergunto,
Muito menos falo comigo próprio,
Ignoro-me, prefiro gatos e plantas.
O silêncio absorve a perda
Para que eu não seja absorvido por ela.
Saio de manhã, está sol,
Não tento o contacto, nenhum contacto,
Ou a manhã fugirá, espantada,
Como apenas mais um dos seus muitos pássaros.
Diria que a terra se sente vazia,
Passada a obsessão de florir,
De multiplicar, a sede perpétua
De desmesura. Talvez assine os corações.
Disseste que o teu tinha muitos quartos
E deduzo que o amor por mim
Seja apenas mais um hóspede,
Mas um amor nunca é apenas

Mais um hóspede.


Retirado de Nuno Rocha Morais

Nuno Morais


A lucidez é o acto de ver
Por entre o pó, a tosse, o lacrimejar;
Não há verdade,
O erro é construção
A sabedoria, desmoronamento.


Retirado de Nuno Rocha Morais

Nuno Morais


Deveria ser dado que morrêssemos
Com um amor ainda vivo em nós,
Como deveria ser dado a um pássaro
Morrer naturalmente em pleno voo.


Nuno Morais .Últimos Poemas. Vila Nova de Famalicão: Quasi, 2009.