terça-feira, 2 de agosto de 2016

Clarice Lispector


E de repente gemi alto, dessa vez ouvi meu gemido. É que como um pus subia à minha tona a minha mais verdadeira consistência – e eu sentia com susto e nojo que “eu ser” vinha de uma fonte muito anterior à humana e, com horros, muito maior que a humana.

Abria-se em mim, com uma lentidão de portas de pedra, abria-se em mim a larga vida do silêncio, a mesma que estava no sol parado, a mesma que estava na barata imobilizada. E que seria a mesma em mim! se eu tivesse coragem de abandonar… de abandonar meus sentimentos? Se eu tivesse coragem de abandonar a esperança.

Clarice Lispector. A Paixão segundo GH. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1986.

Clarice Lispector


Sem um grito olhei a barata.
Vista de perto, a barata é um objeto de grande luxo. Uma noiva de pretas jóias. É toda rara, parece um único exemplar. Prendendo-a pelo meio do corpo com a porta do armário, eu isolara o único exemplar. O que aparecia dela era apenas a metade do corpo. O resto, o que não se via, podia ser enorme, e dividia-se por milhares de casas, atrás de coisas e armários. Eu, porém, não queria a parte que me coubera. Atrás da superfície de casas – aquelas jóias embaçadas andando de rojo?

Eu me sentia imunda como a Bíblia fala dos imundos. Por que foi que a bíblia se ocupou tanto dos imundos, e fez uma lista dos animais imundos e proibidos? Por que se, como os outros, também eles haviam sido criados? E por que o imundo era proibido? Eu fizera o ato proibido de tocar no que é imundo. 

Clarice Lispector. A Paixão segundo GH. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1986.