quinta-feira, 28 de janeiro de 2016

O Desenhador de Sóis


I.

Quero-te enquanto corrente de vida ininterrompida, corrente de vida contínua, o olhar líquido que abraça, o abraço mais quente do sul, essas pegadas que deixaste ao sair da ilha, ao fechar a porta. Quero-te enquanto porta aberta que tem o mesmo nome que o meu pai, as mesmas pegadas de saída, ali onde poderia ser areia, mesmo que só para escrever no cimento uma pegada fresca, um nome desenhado com uma chave, um coração - sempre um coração entre dois nomes - e qualquer data de qualquer século só para nos tornar mais palpáveis - o número da turma, o nome da escola - Dizer os amigos imortais seria um pleonasmo desnecessário. Imaginei hoje uma voz que me enchesse o coração e o meu coração encheu-se de luz. Ele hoje está cheio: é impossível apagar, riscar, parcelar, interromper uma vida. O caminho não é a lápis, nem a vida é uma corda ou fio, porque nada disto se parte a meio, nada disto se detém meu amor.


II.

Escrevo como quem desenha sóis que sabe de cor na memória. Depois de fechar os olhos a luz é perfeita.


III.

 Só aceito no humano o que aquece - o que verdadeiramente aquece - olho para cima e esqueço como um desenhador de sóis, quando fecho os olhos as ondas vêm limpar a minha memória. Hoje nasci algumas vezes e o meu batimento é seguro como estas montanhas ao fim da tarde.



Miguel Martins


Primeiro ciclo da memória

1.
Do lado de fora, tudo parece pouco.
Borborinho, intemperança. Sono.
O rosto não faz prova da memória
mas a memória testemunha a evolução do rosto,
os pares de óculos que por ali passaram,
a fome e o consolo,
a morte de cada beijo,
o milagre do seu renascimento
e por fim, o extremo cansaço,
a gloriosa vitória da derrota.

Por dentro o tempo acumula-se,
Chuva numa piscina abandonada
às sombras de um inverno
que só se interrompe ante a imensa ternura dos teus olhos
nos dias em que o fogo me consome.

2.
Nos dias em que o fogo me consome
- mínima desolação grassando na aridez –
é como se da pele fizesse cacto
para depois lhe negar a pouca água
que não se nega nem aos estuporados.

Então, revejo os símbolos e os dias
e acho apenas vento nessa remissão de pena
que nos permite viver sem estarmos lá.~

É quando tu chegas, vinda do sol e da verdura,
trazendo na mão um cântaro de luz
e, na  tua bondade,
                                   então
                                               renasço.

3.
E se, na tua bondade, então, renasço,
assemelho-me aos frutos e às sementes
no íntimo milagre dessas coisas venais
que se vendem às cestas
mas comportam em si o próprio Cristo.

Incansáveis produtores da vida,
os frutos são um pequeno poema presente
que traz dentro de si canções futuras.

E, assim, que mais fará que de ti diga
que te venero como mãe derradeira
se apenas o silêncio faz sentido
diante da imensa  porta em que te ergues.

4.
Diante da imensa porta em que te ergues,
por detrás da qual os anjos oficiam,
prostro-me,
                        caminheiro sem caminho,
e faço por merecer a paz dos loucos.

Súbito, um clarão apenas perceptível
(um pingo de chuva a mergulhar na terra?)
Assegura-me de que sempre te verei
Ainda que me adiante de mansinho.

E essa certeza basta-me e redime
até os brutos seixos pontiagudos
que rasgam os pés dos peregrinos.

5.
E rasgaram os pés dos peregrinos
como se ser-se escravo os aviltasse,
exigir ao decurso da vida algo mais que meias-solas,
borbulhar como o rio onde cai a cascata.


Miguel Martins, in Colóquio Letras nº 191, Janeiro/Abril 2016.

segunda-feira, 25 de janeiro de 2016

Rúben Darío


De Otoño


Yo sé que hay quienes dicen: ¿por qué no canta ahora 
con aquella locura armoniosa de antaño? 
Ésos no ven la obra profunda de la hora, 
la labor del minuto y el prodigio del año. 

Yo, pobre árbol, produje, al amor de la brisa, 
cuando empecé a crecer, un vago y dulce son. 
Pasó ya el tiempo de la juvenil sonrisa: 
¡dejad al huracán mover mi corazón!



Rúben Darío.

quarta-feira, 13 de janeiro de 2016

José Tolentino Mendonça


Ouve o que diz a mulher vestida de sol
quando caminha no cimo das árvores
«a que distância deixaste
o coração?


José Tolentino Mendonça 

terça-feira, 12 de janeiro de 2016

Adília Lopes


Um quadro de Rubens

Vi-me comoprimida
num ajuntagente
ora eu só suporto pessoas à distância
de preferência com uma mesa de permeio
acontece que uma mulher foi projectada
para cima de mim com um cigarro aceso
há pessoas que vão para ajuntagentes
fumar cigarros!
ora eu temo as queimaduras
muito por sua vez caí por cima de uma mulher
que era um sex symbol depois
de sofrer uma homotetia de razão
superior a 1
há pessoas que vão para ajuntagentes
com dez alcinhas!
era o caso do sex symbol
o vestido tinha três alcinhas
de cada lado
e o soutien alças em duplicado
se caio para baixo passam-me por cima
a única saída é sair por cima
disse de mim para mim
as pessoas do ajuntagente
reparei eu então
eram feitas aos degraus
comecei a subir pelo que
estava mais perto
era uma mulher
dei por isso quando começou
a gritar
a menos que fosse
um contratenor
mas alguém teve a mesma ideia
que eu
e começou a subir por mim acima
ora eu sou intocável
agora já nem consigo
dizer nada de mim para mim
o de mim para mim acabou
não há lugar para mim
num quadro de Rubens


Adília Lopes, Obra.

Adília Lopes

Os poemas que escrevo
são moinhos
que andam ao contrário
as águas que moem
os moinhos
que andam ao contrário
são as águas passadas



Adília Lopes, Obra.

sexta-feira, 8 de janeiro de 2016

Alberto Pimenta


Dantes
Os vendedores
De fruta
Cereais
Plantas e peixe
Estendiam a mercadoria
Nas tendas
Do mercado
E depois iam
Visitar-se uns aos outros
E cumprimentar-se
Desejando
Mutuamente
Um bom negócio.
Uns e outros
Não tinham
O mesmo culto,
Mas sabiam
Que existir
Depende sempre dum contrato.
Agora
Aos sábados
Têm as costas voltadas
Uns para os outros,
Nos olhos
Lê-se-lhes a desconfiança e
A uni-los,
Circulam entre eles
Os cães
Vadios.


Alberto Pimenta, Partilhado a partir de Poems from the Portuguese.


Ruy Belo

Tarde Interior

Vem ao meu pátio ver crescer a sombra
ó cheia de dois olhos minha amiga
Olha-me olha-me como quem chove
conicamente sobre
um coração deposto
do corpo que o cercava

No ulmeiro do caminho
vegetal comentador do nosso amor
a folha tímida não partiu ainda
e ameaça encher a tarde toda
Cubra-te ela a fronte
quando morrer aquém dos pássaros

Repousa minha amiga as mãos
sobre o lugar onde estiveram as palavras
e que os gestos
arredondem um templo para a luz
que dos olhos despedes

Já nos pesa nos pés a sombra

e pomos-lhe por cima o pensamento


Ruy Belo. Todos os Poemas I. Lisboa: Assírio & Alvim, 2004.

Ruy Belo

Segunda Infância

À tua palavra me acolho lá onde
o dia começa e o corpo nos renasce
Regresso recém-nascido ao teu regaço
minha mais funda infância meu paul
Voltam de novo as folhas para as árvores
e nunca as lágrimas deixaram os olhos
Nem houve céus forrados sobre as horas
nem míseras ideias de cotim
despovoaram alegres tardes de pássaros
O sol continua a ser o único
acontecimento importante da rua
Eu passo mas não peço às árvores
coração para além dos frutos
Tu és ainda o maior dos mares
e embrulho-me na voz com que desdobras
o inumerável número dos dias


Ruy Belo. Todos os Poemas I. Lisboa: Assírio & Alvim, 2004.

Ruy Belo

Poema Quotidiano

É tão depressa noite neste bairro
Nenhum outro porém senhor administrador
goza de tão eficiente serviço de sol
Ainda não há muito ele parecia
domiciliado e residente ao fim da rua
O senhor não calcula todo o dia
que festa de luz proporcionou a todos
Nunca vi e já tenho os meus anos
lavar a gente as mãos no sol como hoje
Donas de casa vieram encher de sol
cântaros alguidares e mais vasos domésticos
Nunca em tantos pés
assim humildemente brilhou
Orientou diz-se até os olhos das crianças
Para a escola e pôs reflexos novos
nas míseras vidraças lá do fundo

Há quem diga que o sol foi longe demais
Algum dos pobres desta freguesia
Apanhou-o na faca misturou-o no pão
Chegaram a trata-lo por vizinho
Por este andar… Foi uma autêntica loucura
O astro-rei tornado acessível a todos
Ele que ninguém habitualmente saudava
Sempre o mesmo indiferente
espectáculo de luz sobre os nossos cuidados
Íamos vínhamos entrávamos não víamos
Aquela persistência rubra. Ousaria
alguém deixar um só daqueles raios
atravessar-lhe a vida iluminar-lhe as penas?

Mas hoje o sol
morreu como qualquer de nós
Ficou tão triste a gente destes sítios
Nunca foi tão depressa noite neste bairro



Ruy Belo. Todos os Poemas I. Lisboa: Assírio & Alvim, 2004.