terça-feira, 29 de outubro de 2013

Nuno Moura: Vinte e um mil metros

Comi pão e queijinho fresco, taça tinta, levo-te uma chamuça
mesmo indiana, limpei a gordura ao secador de mãos, que detestas.
Lembrei-me de pouco melhor, fiz-te uma animação, muito caía,
catorze vidas, balas pretas e bonecos inimigos, legendas.

Seres longe, obriga-me a ser lapiseira, amanhã
carteiro, depois já como queres.

Se não te doesse, não me corria.

Nuno Moura, Soluções do Problema Anterior, Lisboa: & etc, 1996.

Nuno Moura: Um poema tenrinho pode ser

  Um poema tenrinho pode ser
quando tu morreres vou tirar a carta
ou
o mosteiro dos pulmões ataca uma barriga sem grades
e nasce uma quantidade razoável de imagens
indo da agulha de cintilo
aos dentes de um morcego beija-mão.

mas pode ser escrever chamar otários
sabrões
zarpos
garôlos
altos comissários
nas paredes para as ruas
das garagens-oficina nova era automóvel.

mas pode ser amor drógádo
síque
não presta.

mas pode ser tão difícil.
mas pode ser
liga à tua antiga madrinha-de-guerra
vai ter com ela saca-a ao marido
mexe com esta merda
pá.


Nuno Moura, Poetas sem qualidades, Averno.

Manuel de Freitas: Avenida Guerra Junqueiro


para o Rui Miguel Ribeiro

Uma cerveja, uma esplanada, pombas
rondando os magros arbustos
- uma espécie de serenidade, intocável.
Penso como seria diferente este preciso momento
se me tivessem internado durante um mês,
à mercê de exames e de uma firme promessa de morte.
Penso que nunca tive um melanoma, uma cirrose,
uma hérnia no estômago, essas coisas
por que passaram alguns amigos meus.
E lembro-me de uns versos de Emily Dickinson
muito parecidos com a luz forte de Lisboa.
Penso que tenho, afinal,
um inferno pequeno
mas verdadeiro
por ser, como o vosso, mortal.

Manuel de Freitas, Poems from the portuguese.
Poems from the Portuguese

Nuno Júdice: Jogo


Eu, sabendo que te amo, 

e como as coisas do amor são difíceis,
preparo em silêncio a mesa
do jogo, estendo as peças
sobre o tabuleiro, disponho os lugares
necessários para que tudo
comece: as cadeiras
uma em frente da outra, embora saiba
que as mãos não se podem tocar,
e que para além das dificuldades,
hesitações, recuos
ou avanços possíveis, só os olhos
transportam, talvez, uma hipótese
de entendimento. É então que chegas,
e como se um vento do norte
entrasse por uma janela aberta,
o jogo inteiro voa pelos ares,
o frio enche-te os olhos de lágrimas,
e empurras-me para dentro, onde
o fogo consome o que resta
do nosso quebra-cabeças.

J
ÚDICE, NUNO (1997), A Fonte da Vida, Lisboa, Quetzal.

segunda-feira, 28 de outubro de 2013

Georges Bataille

O animal abre diante de mim uma profundidade que me atrai e que me é familiar. Essa profundidade eu conheço  num certo sentido: é a minha. É também o que para mim está mais longinquamente oculto, o que merece este nome de profundidade, que quer dizer precisamente o que me escapa. Mas é também a poesia...

BATAILLE, Georges (1993), Teoria da Religião, Editora Ática, São Paulo.

domingo, 27 de outubro de 2013

Antoine de Saint-Exupéry: O Principezinho


Charles Dickens

Uma grande pipa de vinho tinha-se feito em pedaços na rua. O acidente tinha ocorrido quando descarregavam um carro; a pipa caiu ao chão, começou a rodar, os aros partiram-se ao baterem no empedrado e foi a abrir-se, como uma noz, em frente à porta de uma taberna. Toda a gente interrompeu aquilo que estava a fazer, ou os seus ócios, e correu ao lugar do sinistro com a sana intenção de beber vinho. As pedras do pavimento, ásperas, desiguais e pontiagudas, colocadas como a propósito para deixar inválido a todo o que por ela transita, tinham distribuído em pequenos charcos o líquido derramado, e à volta de cada um destes charcos apinhava-se, segundo a sua extensão, um grupo de bebedores que se empurravam. Alguns homens, de joelhos, recolhiam o vinho na palma das mãos e bebiam-no a grandes sorvos, ou deixavam beber as mulheres inclinadas sobre os seus ombros, que o bebiam não com menor avidez antes que o líquido se escorrera entre os dedos. Outros, homens e mulheres, recolhiam-no do chão em pequenos jarros de barro lascados, e até com os lenços que as mulheres traziam à cabeça, que logo exprimiam até à última gota nas bocas abertas das crianças. Não faltava também quem fizesse pequenos diques de barro para conter o vinho que corria, nem quem, espicaçado pelos que observam desde as janelas mais altas, se precipitasse para aqui e para ali para se apropriar de pequenos regueiros que tomavam novas direções. Outros dedicavam-se a chupar pedaços de pipa meios apodrecidos pelo vinho, lambendo e até mordendo os fragmentos mais húmidos com ânsia e prazer.

DICKENS, CHARLES (2013), História de Duas Cidades, Lisboa, Civilização Editora.

sábado, 26 de outubro de 2013

Ana Paula Inácio: Os milagres acontecem


Os milagres acontecem
a horas incertas
e nunca estou em casa
quando o carteiro passa.
Hoje, abriu a primeira flor
e eu disse é um sinal.
Olho em volta: estou só
trago esta sombra comigo.

INÁCIO, Ana Paula (2000), Vago Pressentimento Azul Por Cima, Porto, Ilhas.

Manuel António Pina

Amor como em Casa

Regresso devagar ao teu
sorriso como quem volta a casa. Faço de conta que
não é nada comigo. Distraído percorro
o caminho familiar da saudade,
pequeninas coisas me prendem,
uma tarde num café, um livro. Devagar
te amo e às vezes depressa,
meu amor, e às vezes faço coisas que não devo,
regresso devagar a tua casa,
compro um livro, entro no
amor como em casa.


Manuel António Pina (2001), Poesia Reunida, Lisboa, Assírio & Alvim.


sexta-feira, 25 de outubro de 2013

Almeida Garrett (imitação/idealização)


Mas aqui é que me aparece uma incoerência inexplicável. A sociedade é materialista; e a literatura, que é a expressão da sociedade, é toda excessivamente e absurdamente e despropositadamente espiritualista! Sancho, rei de facto; Quixote, rei de direito. 

Almeida Garrett, Viagens na Minha Terra, 1846.

quinta-feira, 24 de outubro de 2013

Hugo Mujica

EN LA PIEL

A lo lejos, afuera,
cae 
una lluvia 
que tan sólo huelo, una lluvia 
                                que aún no ha llegado.
Aquí 
en la piel, como en una página 
en blanco, 
espero que el agua, la lluvia, 
                           lo que vive y tiembla, 
                                                    me sea alguna vez revelado.


OSADÍA

Ver no es abrir los ojos,
                es arrojar a un lado el bastón blanco:
                                               osar andar
                                                            sobre el saberse perdido.


ALTO, LEJOS

Alto,
lejos, por apenas 
un instante
la nervadura de un relámpago 
                                    incendia de blanco mis ojos,
después todo regresa a lo oscuro,
                                      pero ya no es sólo sombras:
                                                                   son huellas de lo perdido.

INFANCIA

Llueve 
y al árbol le pesan sus hojas, 
                            a los rosales sus rosas. 
Llueve 
y el jardín huele a infancia, 

a cercanía de todos los milagros,
                                 a ausencia de todas las memorias.


Hugo Mujica
 Prémio de Poesia Casa de las Américas 2013.

Vitorino Nemésio: O Pão e a Culpa


O PÃO E A CULPA

Desde que me conheço sei o pão
E o corto em companhia.
Por ele me bate o coração,
E em sua dobra quente
Grelava outrora a alegria
De mim e de muita gente.

Uma hastilha de seiva começava-o
Como um fio de luz,
E a eira rasa dava-o
Tal como a rosa de alva a cor produz.

Vinha a nós como o Reino vem na prece,
Sendo feita a vontade ao Lavrador:
Assim numa alma limpa amadurece
A semente de amor.

Era o pão. Chão de pão,
Dizia-se ‑ e era logo;
Caía o gesto à terra, a espiga balouçava,
O tempo, devagar, corria-lhe a sua mão,
E com um pouco de pinho e outro de fogo
A vida clara estava
Naquela combinação.

Hoje, que é pão ainda, e à noite nosso,
Vai-se a cortar, falta-lhe talvez polpa.
Se não parto na mesa o pão que posso
É minha a culpa.

Eu sei o pão de cada dia e trago-o:
Ontem, como amanhã, já hoje mo dão;
Mas, vago, a meio da dentada, trago-o,
E não, não é bem o mesmo, ou então não posso…

Ou pelo menos não é todo nosso
Este que levo à boca, o nosso pão.
      

NEMÉSIO, Vitorino (1955),  O Pão e a Culpa, Lisboa, 1955.

Alejandra Pizarnik: El Miedo

EL MIEDO

En el eco de mis muertes
aún hay miedo.
¿Sabes tu del miedo?
Sé del miedo cuando digo mi nombre.
Es el miedo,
el miedo con sombrero negro
... escondiendo ratas en mi sangre,
o el miedo con labios muertos
bebiendo mis deseos.
Sí. En el eco de mis muertes
aún hay miedo.

Alejandra Pizarnik

quarta-feira, 23 de outubro de 2013

Afonso Duarte: Epigrama


 Há só mar no meu País
Não há terra que dê pão.
Mata-me de fome
a doce ilusão
de frutos como o sol.

Uma onda, outra onda
o ritmo das ondas me embalou.
Há só mar no meu País
E é ele quem diz
E é ele quem sou. 

Afonso Duarte


José Saramago: A Segunda Vida de Francisco de Assis

FRANCISCO: 
Clara.

CLARA: 
Não digas o meu nome. Deve-se ter muito cuidado com o nome das pessoas. Chama-se por um nome, e ele leva consigo a pessoa que o usa, mesmo não querendo ela.

FRANCISCO: 
Feitiçarias, superstições

CLARA: 
Francisco.

FRANCISCO:
Que é isto? Fizeste-me estremecer?

CLARA: 
Foi o teu nome que te sacudiu e empurrou. Se eu te chamasse outra vez, virias para mim.


SARAMAGO, José (1987), A Segunda Vida de Francisco de Assis, Lisboa, Caminho

José Saramago: Viagem a Portugal


O viajante decide comportar-se segundo a sua condição. Avança por uma rua que é como um extenso charco, salto aqui, salto acolá, e vai tão atento a reparar onde põe os pés que só no último instante vê que tem companhia. Dá os bons-dias (nunca se habituou à saudação urbana que limita os bons votos a um dia de cada vez), e assim mesmo é que lhe respondem, um homem e uma mulher que ali estão sentados, ela com um grande pão no regaço, que daqui a pouco partirá para compartilhar com o viajante (...) O viajante diz o que costuma  “Ando por aqui a fazer uma visita. É uma bonita terra” O homem não dá opinião. Sorri e pergunta “Quer provar do nosso bagaço” Ora o viajante não é bebedor: gosta do seu vinho branco ou tinto, mas tem um organismo que repele aguardentes. Porém em Rio de Onor um bagaço pode-se lá recusar, mesmo vindo ainda tão longe a hora do almoço. Em dois segundos, aparece um copito de vidro grosso e o bagaço, ainda quente, é aparado da bica e emborcado garganta abaixo. Uma plaina não seria menos áspera. Há uma explosão no estômago, o viajante sorri heroicamente e repete. Talvez para reparar os  estragos, a mulher abraço o pão contra o peito, tanto amor neste gesto, corta um canto e uma fatia, e é o seu olhar que pergunta: Quer um bocadinho?





SARAMAGO, José (1995), Viagem a Portugal, Lisboa, Caminho.

terça-feira, 22 de outubro de 2013

Victor Oliveira Mateus: Num café da Via Monginevro


 O rapaz do café olha-me com alguma desconfiança,
mas mesmo assim fala-me, é afável. Talvez seja
do pais esta necessidade de estar próximo, de irradiar
um sólido encurtar distâncias neste tempo de implosões
organizadas. O rapaz do café traz os pedidos como
equilibrista de lugarejo: a bandeja, de uma bacidez

acinzentada, bascoleja copos, latas... e a mim também,
que de equilíbrio me sofro tão incapaz de um eu a recusar-me
unidade e acerto. Certo dia alargou-se mais: que era
lá debaixo, da Ligúria. Nascera em Sestri Levanti. Se eu conhecia,
e olhou-me a ameaçar escárnio: que sim, que sim (acalmei-o),
mas só de passagem, aliás, é de passagem que tudo conheço.

Conclusão que ele entendeu, pois logo me olhou livros e papéis.
O rapaz do café tem algo de metafísico (acabei por decidir),
pois quando fala depressa não o entendo, e quando se explica
pausadamente não o entendo também. Certo dia apanhou-me
alguns versos que me haviam caído da mesa e então perguntou-me

se eu fazia poesia. Que não!, respondi-lhe peremptório,
é ela que me faz a mim; é ela que me não larga, sempre
a recusar-me razão, conformidade. O rapaz do café deixou,
por fim, seu antigo olhar. Agora tem um outro, bem mais
enigmático - coisa de fascínio com hostilidade à mistura.


Victor Oliveira Mateus, Regresso, 2010.

segunda-feira, 21 de outubro de 2013

Camilo Castelo Branco: O dinheiro como inibição temática no Romantismo


 Nos romances todas as crises se explicam, menos a crise ignóbil  da falta da dinheiro. Entendem os novelistas que a matéria é baixa e plebeia. O estilo vai de má vontade para para coisas rasas. Balzac fala muito em dinheiro; mas dinheiro a milhões. Não conheço, nos cinquenta livros que tenho dele, um galã num entreacto da sua tragédia a cismar no modo de arrajar uma quantia com que pague ao alfaiate, ou se desembarace das redes que um usuário lhe lança, desde a casa do juíz de paz a todas as esquinas, donde o assaltam o capital e juro de oitenta por cento. Disto é que os mestres em romance se escapam sempre. Bem sabem eles que o interesse do leitor se gela a passo igual que o herói se encolhe nas proporções destes heroizinhos de botequim, de quem o leitor dinheiroso foge por instinto, e o outro foge também, porque não tem que fazer com ele. A coisa é vilmente prosaica, de todo o meu coração o confesso. Não é bonito a gente deixar vulgarizar-se o seu herói a ponto de pensar na falta de dinheiro. 


BRANCO, Camilo Castelo (1997), Amor de Perdição, Lisboa, Europa-América.

domingo, 20 de outubro de 2013

Miguel-Manso: Video Art

I.                   Video Art
 planos soltos para Velvet Underground

A poesia, tipo,
não precisa de, bom,
não é exactamente uma canção, uma praça ou um parque no Outono
indícios, unicórnios, um capitel clássico
helenicamente erguido sob a librina e o néon
Costumavas sentar-te sobre os Romanos na Library
nesse Verão algemámos deus
ao gradeamento de uma janela em Portland Road
o ano: 1967 e uns copos a mais
Uma oração, dizia-se, desliza como pedra solta até
ao Palladium; na Primavera seguinte estudavas semiótica
e aprendias a escolher legumes no centro da Babilónia
com uma amiga pelo braço, atonal, primeiro, depois
descendo a Avenida A
Duchamp tornou-se uma súbita porção de silêncio arroxeado
colado à folhagem: acácia gelada na manhã de um jardim
pequeno em Nova Iorque
Drella dizia estar farto de pintura e brincava de
marinheiro ou bronze etrusco ou rainha barroca
decapitada, enquanto nós dormíamos cansados de amputar
as pétalas de Nico, dormíamos sobre
o sangue de uma figura de Fellini e não sonhávamos com
o guerreiro moribundo do frontão oriental do Templo de Égina –
caído e sorrindo – nem com o mercado de Benavente
Mas a poesia, tipo
é um dragão em origami, um isqueiro zippo
um riff de guitarra uma aventura espaço intermédio
a soma das partes a sua exclusão
Deitada sobre a cama, usando um espelho entre as pernas
desenhaste a cona a lápis, nas costas
de um menu de restaurante
Que faço agora com as fotografias, as caixas de sapatos
os anos sessenta, a romã podre sobre o tampo da mesa, a cidade
de Damasco?
Muito antes, suponho, e muito depois
de consoar a música o poema o receituário sonoplasta
a Vénus tatuada, o recipiente adequado
a cidade coroava a ferida como se tudo tivesse
promovido o eco
que não termina
A arte, a ironia? por um triz, quase nada
e resta-nos qualquer coisa entre a noite e o mar
um táxi, a garrafa de gin, a morte
porque não? refazendo tudo a partir daí
um trabalho imenso
Miguel-Manso, Santo subito, 2010.

Vittorio de Sicca: Milagre em Milão 1951


Vittorio de Sica, Miracolo a Milano, 1951.

sexta-feira, 18 de outubro de 2013

Miguel de Cervantes, sobre a língua portuguesa


A língua portuguesa é como a língua espanhola sem ossos, uma elegância que é compensada pelo espanhol com outras características expressivas.

Miguel de Cervantes


José Miguel Silva: O Rapaz de cabelo Verde - Joseph Losey (1948)


O rapaz de cabelo verde era eu, em finais de setenta,
a fugir por entre silvas e valados, quando a turba
dos chacais acometia as minhas pernas de pardal,
e só de bicicleta me tirava eu de apuros, pois
as pedras, os apupos, as polés insistiam em mostrar-me
elementos capitais de filosofia política.

Pedalava sobre lágrimas, de volta para os braços
do meu sangue, trepava para o muro do quintal
e de lá esconjurava os assassinos: filhos de uma puta!

Anos depois - que alegria já não ser o mais 
cobarde, ser a mão que traz o pau, a bofetada;
e rir entre os iguais, no renque dos ungidos:
o primeiro cigarro, o exame dos colhões - que sorte
ver as lágrimas cair e não serem minhas.

José Miguel Silva, in Poemas com Cinema, org. de Joana Matos Frias, Luís Miguel Queirós e Rosa Maria Martelo, Lisboa, Assírio & Alvim, 2010.

quinta-feira, 17 de outubro de 2013

Rui Almeida: Os que morrem cedo

  (...)

2. Luís Miguel Nava

Um cheiro forte a carne nasce
Nos lábios,
Contorna a voz viril da inocência
(«Como te chamas?»)
E repete a fortuna do ar
Na dormência do tacto.
(«tenho o dobro da idade
Das tuas mãos em mim»)

A ternura é quase tudo,
É uma roda a moer com o vento
Que nos assusta.

A ponta dos dedos
Torna-se estrangeira numa boca
Próxima do sexo onde tudo é branco,
Lugares de vidro e de ossos vazios,
Estéreis e sem segredos irredutíveis.
(«O que é a culpa
Se não a falta de chão»)

Rui Almeida, in Meditações sobre o Fim: Os últimos poemas, Lisboa, Hariemuj, 2012.

Amado Nervo: La hermana agua

                                                 Laudatu si, mi Signore, per sor acqua...
                                                                                     San Francisco de Asís.

A quien va a leer

Un hilo de agua que cae de una llave imperfecta; un hilo de agua, manso y diáfano, que gorjea toda la noche
y todas las noches cerca de mi alcoba; que canta a mi soledad y en ella me acompaña; un hilo de agua:
¡qué cosa tan sencilla! Y, sin embargo, estas gotas incesantes y sonoras me han enseñado más que los libros.

El alma del Agua me ha hablado en la sombra –el alma santa del Agua- y yo la he oído, con recogimiento y con amor.
Lo que me ha dicho está escrito en páginas que pueden compendiarse así: ser dócil, ser cristalino; esta es la ley y los profetas;
y tales páginas han formado un poema.

Yo sé que quien lo lea sentirá el suave placer que yo he sentido al escucharlo de los labios de Sor Acqua;
y este será mi galardón en la prueba, hasta que mis huesos se regocijen en la gracia de Dios.


1. El agua que corre bajo la lluvia

Yo canto al cielo porque mis linfas ignoradas
hacen que fructifiquen las savias; las llanadas,
los sotos y las lomas por mí tienen frescura.
Nadie me mira, nadie; más mi corriente obscura
se regocija luego que viene primavera,
porque si dentro hay sombras, hay muchos tallos fuera.

Los gérmenes conocen mi beso cuando anidan
Bajo la tierra, y luego que son flores me olvidan.
Lejos de sus raíces las corolas felices
no se acuerdan del agua que regó sus raíces . . ..
¡Qué importa! Yo alabanzas digo a Dios con voz suave.
La flor no sabe nada, ¡pero el Señor sí sabe!

Y canto a Dios corriendo por mi ignoto sendero,
dichosa de antemano; porqué seré venero
ante la vara mágica de Moisés; porque un día
vendrán las caravanas hacia la linfa mía;
porque mis aguas dulces, mientras que la sed matan,
el rostro beatífico del sediento retratan
sobre el fondo del cielo que los cristales yerra;
porque copiando el cielo lo traslado a la tierra,
y así el creyente triste, que el él su dicha fragua,
bebe, al beberme, el cielo que palpita en mi agua,
y como en ese cielo brillan estrellas bellas,
el hombre que me bebe comulga con estrellas.

Yo alabo al Señor bueno porque, con la infinita
pedrería que encuentro de fuegos policromos,
forjó en las misteriosas grutas la estalactita,
pórtico del alcázar de ensueño de los gnomos;
porque en oculto seno de la caverna umbría
doy de beber al monstruo que tiene miedo al día.
¡Qué importa que mi vida bajo la tierra acabe!
Los hombres no lo saben, pero Dios si lo sabe.

Así me dijo el Agua que discurre por los
antros, y yo: -¡Agua hermana, bendigamos a Dios!


2. El agua que corre sobre la tierra

Yo alabo al cielo porque me brindó en sus amores,
para mi fondo gemas, para mi margen flores;
porque cuando la roca me muerde y me maltrata
hay en mi sangre (espuma) filigrana de palta;
porque cuando al abismo ruedo en un cataclismo,
adorno de arco-iris triunfales el abismo,
y el rocío que salta de mis espumas blancas
riega las florecitas que esmaltan las barrancas;
porque a través del cauce llevando mi caudal,
soy un camino que anda, como dijo Pascal;
porque en mi gran llanura donde la brisa vuela;
deslízanse los élitros nevados de la vela;
porque en mi azul espalda que la quilla acuchilla
mezo, aduermo y soporto la audacia de la quilla,
mientras que no conturba mis ondas el Dios fuerte,
a fin de que originen catástrofes de muerte,
y la onda que arrulla sea la onda que hiere . . .
¡Quién sabe los designios de Dios que así lo quiere!

Yo alabo al cielo porque en mi vida errabunda
Soy Niágara que truena, soy Nilo que fecunda,
maelstrom de remolino fatal, o golfo amigo;
porque, mar di la vida, y, diluvio, el castigo.

Docilidad inmensa tengo para mi dueño:
El me dice: “Anda”, y ando; “Despéñate”, y despeño
mis aguas en la sima de roca que da espanto;
y canto cuando corro, y al despeñarme canto,
y cantando, mi linfa tormentas o iris fragua,
fiel al Señor...
¡Loemos a Dios, hermana Agua!


3.La nieve

Yo soy la movediza perenne; nunca dura
en mi una forma; pronto mi ser se transfigura,
y ya entre guijas de ónix cantando peregrino,
ya en témpanos helados detengo mi camino,
ya vuelo por los aires trocándome en vapores,
ya soy iris en polvo de todos los colores,
o rocío que asciende, o aguacero que llueve . . .
Mas Dios también me ha dado la albura de la nieve,
la albura de la nieve enigmática y fría
que cae de los cielos como una eucaristía,
que por los puntiagudos techos resbala leda
y que cuando la pisan cruje como la seda.

Cayendo silenciosa, de blanco al mundo arropo.
Subí, vapor, a lo alto, desciendo al suelo, copo;
subí gris de los lagos que la quietud estanca,
y bajo blanca al mundo . . . ¡Oh qué bello es ser blanca!

¿Por qué soy blanca? En premio al sacrificio mío,
porque tirito para que nadie tenga frío,
porque mi lino todos los fríos almacena
¡y dios me torna blanca por haber sido buena!
¿Verdad que es llevadera la palma del martirio
así? Yo caigo como los pétalos de un lirio
de lo alto, y no pudiendo cantar mi canción pura
con murmurios de linfa, la canto con blancura.

La blancura es el himno más hermoso y más santo;
ser blanca es orar; siendo yo, pues, blanca, oro y canto.
Ser luminosa es otro de los cantos mejores:
¿No ves que las estrellas salmodian con fulgores?
Por eso el rey poeta dijo en himno de amor:
“El firmamento narra la gloria del Señor”.

Se tú como la Nieve que inmaculada llueve

Y yo clamé: -¡Alabemos a Dios, hermana Nieve!


4. El hielo

Para cubrir los peces del fondo, que agonizan
de frío, mis piadosas ondas se cristalizan,
y yo, la inquietuela, cuyo perenne móvil
es variar, enmudezco, me aduermo, quedo inmóvil.
¡Ah! Tú no sabes como padezco nostalgia
de sol bajo esa sábana siempre fría.
Tú no sabes la angustia de la ola que inmola
Sus ritmos ondulantes de mujer –su sonrisa-
al frío, y que se vuelve –mujer de Loth- banquisa:
ser banquisa es ser como la estatua de la ola.

Tú ignoras esa angustia: mas yo no me rebelo,
y ansiosa de que todo en mi Dios sea loado,
desprendo radiaciones al bloque de mi hielo,
y en vez de azul oleaje soy témpano azulado.

Mis crestas en la noche del polo con fanales,
reflejo el rosa de las auroras boreales,
la luz convaleciente del sol, y con deleites
de Seraphita, yergo mi cristalina roca
por donde trepan lentas las morsas y la foca,
seguidas de lapones hambrientos de su aceite . . .

¿Ya ves como se acata la voluntad del cielo?
Y yo recé: -¡Loemos a Dios, hermano hielo!


5. El granizo

¡Tin, tin, tin, tin! Yo caigo del cielo, en insensato
redoble, al campo y todos los céspedes maltrato.
¡Tin, tin! ¡Muy buenas tardes, mi hermana la pradera!
Poeta, buenas tardes, ¡ábreme tu vidriera!
Soy diáfano y geométrico, tengo esmalte y blancura
tan finos y suaves como una dentadura,
y en un derroche de ópalos blancos me multiplico.
¡La linfa canta, el copo cruje, yo . . . yo repico!
Tin, tin, tin, tin, mi torre es la nube ideal:
¡oye mis campanitas de límpido cristal!
La nieve es triste, el agua turbulenta; yo sin
Ventura, soy un loco de atar, ¡tin, tin, tin, tin!
...¿Cenduras? No por cierto, no merezco censuras;
las tardes calurosas por mí tienen frescuras,
yo lucho con el hálito del verano
yo soy bello...
- ¡Loemos a Dios, Granizo hermano!


6. El vapor

El vapor es el alma del agua, hermano mío,
así como sonrisa del agua es el rocío,
y el lago sus miradas y su pensar la fuente;
sus lágrimas la lluvia; su impaciencia el torrente,
y los ríos sus brazos; su cuerpo, la llanada
sin coto de los mares, y las olas, sus senos;
su frente, las neveras de los montes serenos,
y sus cabellos de oro líquido, la cascada.

Yo soy alma del agua, y el agua siempre sube:
las transfiguraciones de esa alma son la nube,
su Tabor es la tarde real que la empurpura:
como el agua fue buena, su Dios la transfigura . . .
Y ya es el albo copo que el azul riela,
ya la zona de fuego, que parece una estela,
ya el divino castillo de nácar, ya el plumaje
de un pavo hecho de piedras preciosas, ya el encaje
de un abanico inmenso, ya el cráter que fulgura . . .
Como el agua fue buena, su Dios la transfigura . . .

-¡Dios! Dios siempre en tus labios está como en un templo.
Dios, siempre Dios . . . ¡en cambio, yo nunca le contemplo!
¿Por qué si dios existe no deja ver sus huellas
por qué taimadamente se esconde a nuestro anhelo,
por qué no se halla escrito su nombre con estrellas
en medio del esmalte magnífico del cielo?

-Poeta, es que lo buscas con la ensoberbecida
ciencia, que exige pruebas y cifras al Abismo . . .
Asómate a las fuentes oscuras de tu vida,
y allí verás su rostro: tu dios está en ti mismo.
Busca el silencio y ora: tu Dios execra el grito;
busca la sombra y oye: tu Dios habla en lo arcano;
depón tu gran penacho de orgullo y de delito . . .
-Ya está
-¿Qué ves ahora?
-La faz del infinito.
-¿Y eres feliz?
-¡Loemos a Dios, Vapor hermano!

7. La bruma

La bruma es el ensueño del agua, que se esfuma
en leve gris. ¡Tú ignoras la esencia de la Bruma!
La Bruma es el ensueño del agua, y en su empeño
De inmaterializarse lo vuelve todo ensueño.
A través de su velo mirífico, parece
como que la materia brutal se desvanece:
la torre es un fantasma de vaguedad que pasma,
todo, en su blonda envuelto, se convierte en fantasma,
y el mismo hombre que cruza por su zona quieta
se convierte en fantasma, es decir, en silueta.
La Bruma es el ensueño del agua, que se esfuma
en leve gris. ¡Tú ignoras la esencia de la Bruma,
de la Bruma que sueña con la aurora lejana!
Y yo dije: -¡Ensalcemos a Dios, oh Bruma hermana!

8. Las voces del agua

-Mi gota busca entrañas de roca y las perfora.
-En mi flota el aceite que en los santuarios vela.
-Por mi raya el milagro de la locomotora
la pauta de los rieles. –Yo pinto la acuarela.
-Mi bruma y tus recuerdos son por extraño modo
gemelos; ¿no ves como lo divinizan todo?
-Yo presto vibraciones de flautas prodigiosas
al cristal de los vasos. –Soy triaca y enfermera
en las modernas clínicas. –Y yo, sobre las rosas
turiferario santo del alba en primavera.
-Soy pródiga de fuerza motriz en mi caída.
-Yo escarcho los ramajes. –Yo en tiempos muy remotos
dí un canto a las sirenas. –Yo, cuando estoy dormida,
sueño sueños azules, y esos sueños son lotos.
-Poeta, que por gracia del cielo nos conoces,
¿no cantas con nosotras?
-¡Sí canto, hermanas voces!

9. El agua multiforme

“El agua toma siempre la forma de los vasos
que la contienen”, dicen las ciencias que mis pasos
atisban y pretenden analizarme en vano;
yo soy la resignada por excelencia, hermano.
¿No ves que a cada instante mi forma se aniquila?
Hoy soy torrente inquieto y ayer fui agua tranquila;
hoy soy, en vaso esférico, redonda; ayer, apenas,
me mostraba cilíndrica en las ánforas plenas,
y así pitagorizo mi ser, hora tras hora;
hielo, corriente, niebla, vapor que el día dora,
todo lo soy, y a todo me pliego en cuanto cabe.
¡Los hombres no lo saben, pero Dios si lo sabe!

¿Por qué tú te rebelas? ¿Por qué tú ánimo agitas?
¡Tonto! ¡Si comprendieras las dichas infinitas
de plegarse a los fines del Señor que nos rige!
¿Qué quieres? ¿Por qué sufres? ¿Qué sueñas? ¿Qué te aflige?
¡Imaginaciones que se extinguen en cuanto
aparecen . . .! ¡En cambio, yo canto, canto, canto!
Canto, mientras tu penas, la voluntad ignota;
canto cuando soy chorro, canto cuando soy gota,
y al ir, Proteo extraño, de mi destino en pos,
murmuro: -¡Que se cumpla la santa ley de Dios!

¿Por qué tantos anhelos sin rumbo tu alma fragua?
¿Pretendes ser dichoso? Pues bien: sé como el agua;
sé como el agua, llena de oblación y heroísmo,
sangre en el cáliz, gracia de Dios en el bautismo;
sé como el agua, dócil a la ley infinita,
que reza en las iglesias en donde está bendita,
y en el estanque arrulla meciendo la piragua.
¿Pretendes ser dichoso? Pues bien: sé como el agua;
lleva cantando el traje de que el Señor te viste,
y no estés triste nunca, que es pecado estar triste.
Deja que en ti se cumplan los fines de la vida:
sé declive, no roca; transfórmate y anida
donde al Señor le plazca, y al ir del fin en pos,
murmura: ¡Que se cumpla la santa ley de Dios!

Lograrás, si lo hicieres así, magno tesoro
de bienes: si eres bruma, serás bruma de oro;
si eres nube, la tarde te dará su arrebol;
si eres fuente, en tu seno verás temblando al sol;
tendrán filetes de ámbar tus ondas, si laguna
eres, y si océano, te plateará la luna.
Si eres torrente, espuma tendrás tornasolada,
y una crencha de arco-iris en flor, si eres cascada.


Así me dijo el Agua con místico reproche,
Y yo, rendido al santo consejo de la Maga,
Sabiendo que es el Padre quien habla entre la noche,
Clamé con el Apóstol: -Señor, ¿qué quieres que haga?

Amado Nervo (1901).

Victor Hugo

"Está pois a pena de morte abolida nesse nobre Portugal, pequeno povo que tem uma grande história. (…) Felicito a vossa nação. Portugal dá o exemplo à Europa. Desfrutai de antemão essa imensa glória. A Europa imitará Portugal. Morte à morte! Guerra à guerra! Viva a vida! Ódio ao ódio. A liberdade é uma cidade imensa da qual todos somos concidadãos"

Victor Hugo sobre a aboliçao da pena de morte em portugal.

domingo, 6 de outubro de 2013

José Mário Silva: Cinemas King (Sessão da Meia-Noite)


Deixa passar oito minutos,
entra já às escuras, segue
o foco da lâmpada na
escuridão. Observa, 
se puderes, o travelling 
a reflectir-se, trémulo,
em rostos desconhecidos.
Guarda o bilhete rectangular 
no bolso do casaco e senta-te
na primeira fila, para que a
vista arda. Depois respira
fundo. Sabes como funciona:
a verdade (e a mentira) em 
24 imagens por segundo.

 José Mário Silva, Cinemas King (Sessão da Meia-Noite), in FRIAS, Joana Matos; Queirós, Luís Miguel; MARTELO, Rosa Maria (2010), Poemas com Cinema, Lisboa, Assírio & Alvim.

sexta-feira, 4 de outubro de 2013

Carlos de Oliveira: Sobre o Lado esquerdo


De vez em quando a insónia vibra com a nitidez dos sinos, dos cristais. E então, das duas uma: partem-se ou não se partem as cordas tensas da sua harpa insuportável.
No segundo caso, o homem que não dorme pensa: “o melhor é voltar-me para o lado esquerdo e assim, deslocando todo o peso do sangue sobre a metade mais gasta do meu corpo, esmagar o coração”.

Carlos de Oliveira (1992), Obras de Carlos de Oliveira, Lisboa, Editorial Caminho.

António Maria Lisboa: Operação do Sol


A minha Liberdade não colidirá com a liberdade de outro, mas sim com a falta dela nele e se a minha liberdade é herética porque sábia, é ainda contra a falta de amor profundo, no outro, que colide a minha sabedoria.
                                                                            [...]


António Maria Lisboa, Operação do Sol.
LISBOA, António Maria (1995), Poesia, Lisboa, Assírio & Alvim. 

Mia Couto: O cego Estrelinho


O cego Estrelinho era pessoa de nenhuma vez: sua história poderia ser contada e descontada não fosse seu guia, Gigito Efraim. A mão de Gigito conduziu o desvistado por tempos e idades. Aquela mão era repetidamente comum, extensão de um no outro, siamensal. E assim era quase de nascença. Memória de Estrelinho tinha cinco dedos e eram os de Gigito postos, em aperto, na sua própria mão. 
O cego, curioso, queria saber de tudo. Ele não fazia cerimónia no viver. O sempre lhe era pouco e o tudo insuficiente. Dizia, deste modo:
- Tenho que viver já senão esqueço-me.
Gigitinho, porém, o que descrevia era o que não havia. O mundo que ele minuciava eram fantasias e rendilhados. A imaginação do guia era mais profícua que papaeira. O cego enchia a boca de águas:
- Que maravilhação esse mundo. Me conte tudo, Gigito!
A mão do guia era, afinal, o manuscrito da mentira. Gigito Efraim estava como nunca esteve S. Tomé: via para não crer. O condutor falava pela ponta dos dedos. Desfolhava o universo, aberto em folhas. A ideação dele  era tal que mesmo o cego, por vezes, acreditava ver. O outro lhe encorajava esses breves enganos:
- Desbengale-se, você está escolhendo a boa procedência!
Mentira: Estrelinho continuava sem ver uma palmeira à frente do nariz. Contudo, o cego não se conformava em suas escurezas. Ele cumpria o ditado: não tinha perna e queria dar o pontapé. Só à noite el desalentava, sofrendo medos mais antigos que a humanidade. Entendia aquilo que, na raça humana, é menos primitivo: o animal.
- Na noite aflige não haver luz?
- Aflição é ter um pássaro branco esvoando dentro do sono.
Pássaro branco? No sono? Lugar de ave é nas alturas. Dizem até que Deus fez o céu para justificar os pássaros. Estrelinho disfarçava o medo dos vaticínios, subterfugindo:
- E agora Gigitinho? Agora, olhando assim para cima, estou face ao céu?
Que podia o outro responder? O céu do cego fica em toda a parte. Estrelinho perdia o pé era quando a noite chegava e seu mestre adormecia. Era como se um novo escuro nele se estreasse em nó cego. Devagaroso e sorrateiro ele aninhava sua mão na mão do guia. Só assim adormecia.
[...]


COUTO, Mia (1994), Estórias Abensonhadas, Lisboa Caminho.


Receção a "O Sentimento dum Ocidental"


Ah! Quanto eu ia indisposto contra tudo e contra todos! Uma poesia minha, recente, publicada numa folha bem impressa, limpa, comemorativa de Camões, não obteve um olhar, um sorriso, um desdém, uma observação! Ninguém escreveu, ninguém falou, nem um noticiário, nem uma conversa comigo; ninguém disse bem, ninguém disse mal!
Apenas um crítico espanhol chamava às chatezas dos seus patrícios e dos meus colegas - pérolas - e afirmava - fanfarrão! - que os meus versos "hacen malísima figura en aquellas páginas impregnadas de noble espíritu nacional".

Cesário Verde, 1880 Referindo-se à receção crítica de "O Sentimento dum Ocidental".

VERDE, Cesário (1988), Obra Completa de Cesário Verde, Organização de Joel Serrão, Lisboa, Livros do Horizonte.
Citado a partir de: Rosa Maria Martelo (2012), O Cinema da Poesia, Lisboa, Documenta.