segunda-feira, 30 de setembro de 2013

Meios de Transporte: João Cabral de Melo Neto

                      
O câncer é aquele ônibus
que ninguém quer mas com que conta;
não se corre atrás dele,
mas quando ele passa se toma;

que ninguém quer mas sabe;
e que um dia ao sair-se do sono,
lá está, semi-surpresa,
quase pontual, no seu ponto.

Sem pontos de parada,
solto nas ruas como um táxi,
sem o esperar, querer,
sem ter por que, se toma o enfarte:

táxi que, de repente,
ao lado de quem não se pensava,
pára, no meio-fio,
toma, quem não o vira ou chamara.


João Cabral de Melo Neto (1986),  Poesia Completa (1940-1980), Lisboa, Imprensa Nacional Casa da Moeda, 1986.

O Vendedor de Borboletas - Luis Manuel García


As espessas solas das tuas botas oprimem-se contra a borda do C-130, minutos antes de tocares a brita do conhecido caminho recozido por sóis e salitres entre os trópicos de Câncer e de Capricórnio. Produz-se um estremicimento sob os teus pés, no flanco dolorido da terra. O couro do cano flecte com a mesma impassibilidade com que cobria as carnes de uma Holstein em Denver, sem o temor que o retesou enquanto o comboio serpenteava pelos trigais do Midwest, sem a premonição nem os espasmos ante os matadouros e as fábricas de cortumes de Chicago, muito perto da oficina onde as mãos de uma rapariga loira, que talvez se chamasse Mary ou Katy, iam semeando a pele de pontos e impressões digitais. Uma rapariga sardenta do Kentucky que bebe Sprite, termina a High School nas aulas da noite, lê fotonovelas e sonha com Robert Redford enquanto faz amor com um namorado tão alto como tu, e tão magro, que lhe serviriam as tuas calças fiadas em Atlanta com o áspero algodão do Alabama. As tuas calças, que agora se camuflam entre as ervas-da-guiné; a sua ondulação ao vento, onde se escondem presságios de arrozais em Binh-Dinh durante o ano Suu, no ciclo de Tet. Sob o colete a camisa começa a humedecer-se, entre os trópicos de Câncer e de Capricórnio. O celofane enruga-se mas ainda te protegem os Marlboros (US  Tax Selected fine Tobacco Phillip Morris. Richmond) e corre perigo a fotografia de Catherine brincando aos jardins zoológicos com o ursinho de peluche Mike, no pátio de Fresno, Califórnia. A ordem é pentear o capim em formação cerrada até ao alto das colinas. E vais cumprindo com a precisão de quem ajusta os circuitos de uma Texas Instruments. Se assim não fosse, poderias pertencer à Army, mas nunca à Eighty Second Division – acção rápida, golpes eficazes e limpos em qualquer parte do planeta.  Não te teriam transferido para Fort Bragg, North Carolina, nem Catherine poderia passar as suas férias de verão no Bungallow novo de Long Beach, onde a criança que foste apedrejou os castelos de areia que fazia Raymond, o teu raquítico primo professor de Física Molecular e pacifista em Berkeley. E os castelos desmoronavam-se como há momentos o edifício mais compacto de Saint George’s. Quando voaram sobre ti os Intruders da Navy, puseste o palito de carvalho que te acompanha sempre desde Da Nang entre os dentes. Por muito longe que ocorram, as explosões afectam as membranas do tímpano, e sorris ao pensar num oficial da Army surdo. Entre a onda e o som, pudeste imaginar o edifício mais compacto  de Saint George´s ligado aos olhos celestes de Ronald, o rapaz de Birmingham, através do colimador. E depois  nem sequer imaginaste. A erva abre-se por vezes em pedregais, fecha-se em cerros de arbustos recrestados e o ursinho Mike converte-se numa mancha que já não pode brincar aos jardins zoológicos com uma menina decapitada pelo suor.

Luis Manuel García – O vendedor de borboletas, in A Ilha Contada: Antologia de Contos Cubanos. Lisboa: Caminho, 1996.

quinta-feira, 26 de setembro de 2013

O que é a Literatura?


O escritor não deve mais dizer "Só vou ter 3.000 leitores", mas sim "O que é que aconteceria se toda a gente lesse o que eu escrevo"?



Jean-Paul Sartre, O Que é a Literatura?

(Situations II) 1948.

terça-feira, 24 de setembro de 2013

Um Adeus Português

Nos teus olhos altamente perigosos
vigora ainda o mais rigoroso amor
a luz dos ombros pura e a sombra
duma angústia já purificada

Não tu não podias ficar presa comigo
à roda em que apodreço
apodrecemos
a esta pata ensanguentada que vacila
quase medita
e avança mugindo pelo túnel
de uma velha dor

Não podias ficar nesta cadeira
onde passo o dia burocrático
o dia-a-dia da miséria
que sobe aos olhos vem às mãos
aos sorrisos
ao amor mal soletrado
à estupidez ao desespero sem boca
ao medo perfilado
à alegria sonâmbula à vírgula maníaca
do modo funcionário de viver

Não podias ficar nesta casa comigo
em trânsito mortal até ao dia sórdido
canino
policial
até ao dia que não vem da promessa
puríssima da madrugada
mas da miséria de uma noite gerada
por um dia igual

Não podias ficar presa comigo
à pequena dor que cada um de nós
traz docemente pela mão
a esta pequena dor à portuguesa
tão mansa quase vegetal

Mas tu não mereces esta cidade não mereces
esta roda de náusea em que giramos
até à idiotia
esta pequena morte
e o seu minucioso e porco ritual
esta nossa razão absurda de ser

Não tu és da cidade aventureira
da cidade onde o amor encontra as suas ruas
e o cemitério ardente
da sua morte
tu és da cidade onde vives por um fio
de puro acaso
onde morres ou vives não de asfixia
mas às mãos de uma aventura de um comércio puro
sem a moeda falsa do bem e do mal

Nesta curva tão terna e lancinante
que vai ser que já é o teu desaparecimento
digo-te adeus
e como um adolescente
tropeço de ternura
por ti

Alexandre O´Neill, No Reino da Dinamarca (1958).
Poesias Completas. Lisboa: Assírio & Alvim, 2012.

Antonin Artaud

É inútil reprovar uma maioria por carecer de sentido de sublime se confundimos o sublime com algumas das suas manifestações formais, que por outra parte são sempre manifestações mortas. E se a maioria das pessoas não compreender hoje em dia o Rei Édipo, atrevo-me a dizer que a culpa é de Rei Édipo e não da maioria. 

Antonin Artaud, O Teatro e o seu Duplo (1935).

António Ramos Rosa

Não posso adiar o amor para outro século
não posso
ainda que o grito sufoque na garganta

ainda que o ódio estale e crepite e arda
sob montanhas cinzentas
e montanhas cinzentas

Não posso adiar este abraço
que é uma arma de dois gumes
amor e ódio

Não posso adiar
ainda que a noite pese séculos sobre as costas
e a aurora indecisa demore
não posso adiar para outro século a minha vida
nem o meu amor
nem o meu grito de libertação

Não posso adiar o coração



António Ramos Rosa, (17 de Outubro 1924 - 23 de Setembro 2013)
ROSA, António Ramos (1985), Matéria de Amor, Lisboa, Presença. 

sábado, 21 de setembro de 2013

Discurso sobre a Dignidade do Homem

Tu, pelo contrário (Homem) não constrangido por nenhuma limitação, determiná-la-ás para ti, segundo o teu arbítrio, a cujo poder te entreguei. Coloquei-te no meio do mundo para que daí possas olhar melhor tudo o que há no mundo. Não te fizemos celeste nem terreno, nem mortal nem imortal, a fim de que tu, árbitro e soberano artífice de ti mesmo, te plasmasses e te informasses, na forma que tivesses seguramente escolhido. Poderás degenerar até aos seres que são as bestas, poderás regenerar-te até às realidades superiores que são divinas, por decisão do teu ânimo.


Giovanni Pico Della Mirandola, Discurso sobre a Dignidade do Homem, 1486.

sexta-feira, 20 de setembro de 2013

Harold Bloom: O Futuro da Imaginação (2002).


A literatura sapiente é quase sempre elíptica; os bons provérbios evitam declarar os seus valores. Onde encontrar a sabedoria? Nas narrações elípticas do futuro espero, que se parecerão mais a Lewis Carroll do do que a Flaubert e Joyce, espero ver o conselho indireto e sábio que só a literatura imaginativa pode brindar.
[...]

O futuro pertence, em parte, a uma espécie de literatura sabiamente elíptica. 
[....]

A sabedoria determinará quanto há que omitir.


                                                                                             Harold Bloom. Anagrama, 2002.

Alexandre O´Neill: Made in Portugal


Alexandre O´Neill, Feira Cabisbaixa. Lisboa: Sá da Costa, 1979.

Octavio Paz: Valle de México


Octavio Paz, Valle de México.

Um Amor de Swann

Um dia, na etapa mais tranquila e larga que havia podido superar sem que os cíúmes o atacassem, tinha aceitado ir pela noite ao teatro com a Princesa dos Laumes. Ao abrir o jornal para procurar a programação, a leitura do título: As raparigas de mármore de Théodore Barrière sacudiu-o com tanta crueldade que momentaneamente atirou-se para trás e afastou a visão. Enfocada por luzes de velas, naquele novo sítio em que aparecia, a palavra "mármore" que ele tinha perdido já a faculdade de distinguir, por encontrá-la tão frequentemente diante dos seus olhos, de repente se tinha tornado visível e tinha-o feito recordar instantaneamente aquela história que Odette lhe tinha contado no ano anterior, de uma visita que tinha realizado no Salão do Palácio de Indústria com a Senhora Verdurin, e onde esta lhe tinha dito: "Presta atenção, eu saberei descongelar-te, tu não és de mármore". Odette tinha-lhe assegurado que se tratava de uma piada e ele não tinha dado mais importância a isso. Mas nessa altura tinha mais confiança nela do que agora. E precisamente a carta anónima falava de amores dessa classe. Sem se atrever a olhar o jornal, desdobrou-o, passou uma página para não ver o título: As raparigas de mármore e começou a ler maquinalmente as notícias da província.

Marcel Proust, Um Amor de Swann. 
        



segunda-feira, 16 de setembro de 2013

La Chinoise




"Uma minoria na linha revolucionária correta já não é uma minoria"

 Jean Luc Godard, La Chinoise, (1967).

quarta-feira, 11 de setembro de 2013

Museu de Cera


            I.

Tive ontem um estranho pesadelo. Estava num local que não parecia ser a Terra, e um guia muito alto levava-me pela mão, tinha feições que se pareciam com as do DJ Kant, mas por alguma característica no seu perfil e gestos, percebi que não era ele. Falava-me em latim, e não sei como, eu percebia. O sonho permite-o. Guiou-me até um grande muro com um portão, não dava para ver onde acabava o muro, perdia-se no horizonte para um e outro lado. Olhei para trás, vi que só havia deserto: Alguns cactos e elevações de terra, como uma paisagem do Arizona. Um abutre aterrou em cima do muro, enquanto o portão se abriu. O guia disse-me: Os abutres também sonham – Sorriu. Entramos por um corredor e ele disse-me: Aqui está um museu de cera.

            II.

Avisou-me que o museu reproduzia todas as pessoas da Terra, todas elas, dos diferentes continentes, ilhas, pólos, estavam ali diante de nós esculpidas de cera. Assim que um homem morria na terra, a sua reprodução no museu era retirada para um armazém onde a cera era reciclada para fazer as estátuas dos bebés que nasciam. A cada semana os artesões trabalhavam cada estátua, alterando-lhes as expressões que o tempo fazia na realidade, aumentado os cabelos, alongando um pouco o corpo das crianças durante o seu crescimento, encurvando os mais velhos, baixando-os, a cada mês esculpindo novas rugas a partir da cera. O número de artesões que trabalhavam no museu era o mesmo número de pesadelos que um homem pode ter durante a sua vida completa – disse-me o meu guia.
            III.

            Estávamos no centro do museu, o director dos artesões juntou-se a nós, cumprimentou o meu guia e começou a falar para ele, sem olhar para mim. Não percebia o que diziam. Por vezes o director olhava para mim de lado, virando logo a cara para o guia. Suspeitei que estivessem a falar de mim. Tive medo.

            IV.

            No centro do museu estavam os amantes abraçados, a sua reprodução em cera, os seus gestos paralisados num momento que realmente aconteceu na Terra. Tive vontade de acordar, tinha consciência que estava a sonhar, mas não o conseguia fazer. O guia levou-me depois a duas estátuas que eram a nossa reprodução, Cecília. Abraçados no miradouro. Eu segurava-te a mão, e alisava-te o cabelo, tu estavas com a cabeça encostada ao meu peito. Tinhas adormecido - disse-me o guia. O diário estava a teus pés, tinha-te caído das pernas, agora lembrava-me. Todos os que os leriam também seriam reproduzidos em cera.

Nuno Brito, Duplo-Poço.

Golgona Anghel

[Não gosto de contar os desastres em detalhe]

Não gosto de contar os desastres em detalhe
mas, se quiserem, posso escrever uma lista com nomes e camas.
Sou bem capaz de molhar o pezinho na história da barbárie,
condecorar o medo,
cortar-me a mão com que limpo as feridas
de uma civilização em queda.
Posso perfeitamente
ir afiando o gume da esperança
com a flor branca de um cancro.
Sou, em definitivo, este comediante de rua
que serve a desconhecidos,
em copos pequenos,
a medida certa da sua agonia.
Descobre sonhos
onde outros só encontram coelhos.
Hoje, por exemplo, quando tirou as luvas,
viu que lhe faltavam dedos.
                                                          
                                                                          Golgona Anghel, Poems from the Portuguese

sexta-feira, 6 de setembro de 2013

Albert Camus

Escrevo tal como nado, porque o meu corpo assim mo exige.

Albert Camus, Cadernos.