domingo, 25 de agosto de 2013

Eugénio de Andrade

Sobre as Sílabas

O assédio do verão, as rolas
dos pinheiros, a risca de sal
das areias; às vezes
chovia – então um barco
de borco era o abrigo
era o amigo; a chuva abria
o aroma dos fenos, não tardava
o sol em cada sílaba.

Eugénio de Andrade – Rente ao Dizer (1992).


sexta-feira, 23 de agosto de 2013

Dos "Exercícios de Estilo" às "Novas Cartas Portuguesas" Diferentes Percursos de um Campo Amplo


Universidad Nacional Autónoma de México
Facultad de Filosofia y Letras
VI Coloquio de Letras Modernas de estudiantes para estudiantes: "El Erotismo"



Dos Exercícios de Estilo às Novas Cartas Portuguesas
Diferentes percursos de um Campo Amplo




Este estudo trata o erotismo na literatura portuguesa da segunda metade do século XX, incidindo especificamente em dois livros publicados com um ano de diferença: “Os Exercícios de Estilo” de Luiz Pacheco e as “Novas Cartas Portuguesas”, um livro escrito a seis mãos por Maria Teresa Horta, Maria Isabel Barreno e Maria Velho da Costa, “As Três Marias” como ficariam conhecidas depois de um processo movido pelo Estado Português contra as três autoras. Um caso que ganhou uma grande projeção internacional num momento em que se vivia ainda o período da ditadura fascista do Estado Novo que só seria derrubado dois anos depois desta publicação. Há uma paisagem política marcante que vai condicionar a sociedade e servir de fundo a todos os quadrantes da vida portuguesa. Seria impossível perceber a projeção das “Novas Cartas Portuguesas” isolada do sistema político repressivo que se vivia e da vitalidade do movimento feminista internacional.
Nesse sentido divido esta conferência em três partes fundamentais. A primeira (em jeito de panorâmica rápida) será uma breve introdução sobre o contexto político que vai condicionar as manifestações sociais e culturais no Portugal da segunda metade do século XX. Ainda nesta introdução histórica introduzirei uma passagem pequena sobre algumas manifestações do erotismo na literatura portuguesa do final do século XIX e do século XX que irão influenciar os dois casos sobre os quais incidem mais estas conferências. Assumo que será privilegiado neste estudo o conto “Comunidade” de Luiz Pacheco, inserido nos “Exercícios de Estilo”, como iremos ver.


Contextualização Histórica

Antes de entrar no campo do erotismo na Literatura Portuguesa é necessário contextualizar um pouco o estado da literatura em Portugal em meados do século XX e para isso é necessário perceber a História política, social e cultural em que ela se enquadrava.

Entre 1933 e 1974 Portugal foi governado por um regime fascista que ficou conhecido pelo período do Estado Novo. Um longo período ditatorial que durou mais de 40 anos. António Oliveira Salazar, como Presidente do Conselho governou o país entre 1933 e a data da sua morte em 1970. Após a sua morte sucedeu-lhe diretamente Marcelo Caetano. O Regime do Estado Novo só seria derrubado com a revolução do 25 de Abril de 1974 que permitiu a implantação da democracia.
O regime totalitário e fascista do Estado Novo assentou as suas bases na Propaganda dos ideais nacionalistas, no controlo completo da educação, na repressão policial e na censura.
Logo em 1933 é criada a Polícia de Vigilância e Defesa do Estado (PVDE) que mais tarde ficará conhecida como PIDE (Polícia Internacional e de Defesa do Estado).
 Esta polícia política dispunha de uma vasta rede de informadores por todo o país que para obter informações sobre a resistência ao regime interceptava a correspondência e os telefonemas, vigilavam os locais públicos controlando grande parte da informação. Milhares de resistentes políticos foram presos. Ainda em 1933 foi criada a Direção Geral dos Serviços de Censura que instituiu a Censura Prévia. O regime fascista passa a controlar completamente a entrada de livros em Portuga e  a criação de editoras e jornais.
Para o Estado Novo a função da censura será "impedir a perversão da opinião pública na sua função de força social e deverá ser exercida por forma a defendê-la de todos os factores que a desorientem contra a verdade, a justiça, a moral, a boa administração e o bem comum, e a evitar que sejam atacados os princípios fundamentais da organização da sociedade" – O regime reservava para si os critérios do que seria a verdade, a justiça, a moral. O controlo da informação passa completamente para as mãos do regime. Não só pela informação intensionalmente detorpada e condicionada da propaganda nacionalista ou do controlo completo do ensino público, mas sobretudo pelo filtro que a censura veio impôr na vida quotidiana e pelo clima de medo generalizado que provocava a circulação de qualquer informação que fosse contrária ao regime. Como exemplo da força da censura política, a palavra “suicidio” estava completamenta proíbida na imprensa ou em publicações científicas e literárias. O regime queria propagar a ideia de que em Portugal tudo estaria completamente bem, ao ponto de ninguém sofrer por exemplo de problemas pessoais ou mentais que levassem a praticar o ato de terminar com a sua vida. O Estado novo imitou inicialmente o regime corporativo de Benito Mussolini. Tudo contra a Nação, nada contra a Nação é uma das frases de propaganda de António Oliveira Salazar que refere também que “O jornal é o alimento espiritual do corpo e deve ser fiscalizado como todos os alimentos”. O controlo total da informação pelo Estado fascista e a repressão policial expressada de todas as formas no dia-a-dia do país vai estar presente até 1974. O secretariado Nacional de Informação dependia diretamente de António Oliveira Salazar. Toda a Literatura que apresentasse um mínimo sinal de ser subversiva era proibida. A gíria popular passou a integrar a expressão “passar pelo lápis azul”, uma vez que era esta a côr dos lápis que os censores usavam para apontar as passagens a ser cortadas ou as considerações marginais.
Este clima repressivo vai marcar a literatura portuguesa de uma forma dupla. A primeira aliada ao clima de medo generalizado a um regime estanque que impedia a liberdade de expressão e condicionava a criação literária. A segunda porque o regime totalitário e fascista vai servir de contexto à criação literária de grande parte do século XX.
Se o Modernismo Literário assumiu em Portugal um elevado grau de evolução sobretudo através da geração de Orpheu e no género da poesia com Fernando Pessoa, Mário de Sá Carneiro e Almada Negreiros, a imposição do regime fascista do Estado Novo veio estancar em grande medida a cultura portuguesa pela opressão e controlo de informação que impôs. Os neo-realistas portugueses ao contrário dos modernistas tiveram como pano de fundo um regime totalitário que de várias formas os condicionou. Escritores como Alves Redol, Miguel Torga são presos e torturados. O clima de medo atua também como auto-inibição na criação literária.

Vou começar ó estudo de  Comunidade, conto que Luiz Pacheco escreveu e publicou de forma isolada em 1964 e que ganhou maior divulgação quando foi inserido na sua antologia de contos Exercícios de Estilo em 1971. Nos Exercícios de Estilo tornaram-se conhecidos muitos dos seus contos e narrativas breves que já anteriormente tinham sido publicados de forma dispersa em pequenas publicações de pouca circulação. Os Exercícios de Estilo trazem uma grande amplitude temática e uma também grande abrangência na forma de retratar e manifestar esses temas. Como elemento unificador do conjunto está a quantidade insessante de informações autobiográficas: a entrega da pessoa e escritor Luiz Pacheco ao narrador dos diferentes contos. Este carácter autobiográfico expressa-se nunca através do confessionalismo ou da revelação de um mundo interior subjetivo e abstrato. Os elementos autobiográficos revelam-se praticamente como factos concretos da vida do escritor que se espelha duplamente (a si e aos outros) de uma forma impessoal e é este o núcleo de Luiz Pacheco: a impessoalidade. O seu ser e estar no mundo reflete-se num espelho duplo – através do mimetismo do exterior e do mimetismo da sua entrega interior. Através da relação com os outros (e unicamente nesta zona de contato) o individuo reflete-se, manifesta-se e mostra-se globalmente. Um Espelho duplo onde a frase de David Foster Wallace se integrava plenamente:
Aqui o autor. Quero dizer o autor de verdade, o ser humano de carne e osso que segura o lápis, não uma máscara narrativa abstrata.” (Citação de David Foster Wallace)
O mesmo acontece no seu diário escrito entre 1971 e 1975, publicado com o título Diário Remendado (1971-1975) - O Diário como género literário seria por excelência o lugar de confessionalismo e entrega subjetiva. Mas Diário Remendado é sobretudo um lugar de organização concreta do dia-a-dia do escritor, uma organização das suas tarefas como tradutor e revisor também, um lugar de necessidade de estruturação da vida, planeamentos concretos (como o abandono da bebida – recordemos que Luiz Pacheco era alcoólico) projeções futuras de publicações. À parte as considerações sobre a literatura portuguesa, desde dentro, questões práticas e questões de afetividade, há lugar no entanto no “Diário Remendado” para a entrega à comunhão seguinte “Quero impregnar-me de gente, de paisagem portuguesa”. A relação com a família, os amigos, a perda dos filhos –entregas concretas e não confessionais. Organizações e fundações da sua sobrevivência quando a sua vida sofre sérias limitações no que diz respeito à solvência económica, ao alcoolismo, à falta de condições do local onde vive com a mulher e os filhos. Alguns deles são retirados à família por falta de recursos para a sua manutenção e este último fator vai marcar constantemente a sua escrita e acima de tudo as formas pelas quais se manifesta o erotismo na sua criação literária. Exposição total da vida do autor na zona de contacto com os outros. Anulamento do “eu” em favor da relação contínua com o todo (família, amigos) através de relações apaixonadas (ou pela afinidade total ou pelo ódio total).
Comunidade possui muitas características que o remetem para um texto de oração, o principal deles é o Agradecimento e a Bendição. O narrador agradece e bendiz o dia e a manhã que estão para vir. Agradece “a sua pequena tribo”, a oportunidade de estar nesse momento unido com a mulher e os filhos. Agradecimento simples e sincero de uma comunhão plena (ainda que com a noção da perenidade e precariedade da situação). O ato do agradecimento é reforçado com a bendição, a consciência de que se vive um momento amplo onde todos os desejos estão satisfeitos. Bendiz a comunhão plena que lhe permite este contínuo ser “A Comunidade”. A bendição é sempre o exercício mais puro de oração – Mais do que um pedir, é agradecer quem e o que se tem e mais do que agradecer é pedir que aquilo que se tem se expanda, se potencialize (ou que pelo menos nunca nos falte). A união com a Comunidade. O Pedido de renovação do mesmo contato, a mesma ligação que se sabe perecível e por isso sempre incompleta, em contínuo (os seres não pararão de se unir).
O género da oração, usado tantas vezes no literário, é um género que se associa sempre mais vincadamente ao género lírico. A Oração, como texto religioso usa quase sempre este género, o verso curto, a repetição não só dos conjuntos semânticos, mas também dos ritmos, o uso de assonâncias. A repetição com a dupla função de facilitar a memorização da oração e a repetição com uma função sagrada, de reforço (do agradecimento, da prece, da bendição, da exaltação ou contemplação) nisto o género da oração assemelha-se ao Hino ou ao Cântico Sagrado. O Hino adquirirá para os nacionalismos e instituições o papel que irá desempenhar o Cântico de Louvor para a religião. A repetição como um reforço de uma sacralização e de uma entrega absoluta assume também o papel de aglutinador dos adoradores: os que cantam o Cântico Sagrado ou os que cantam o Hino.
Na Literatura Portuguesa podemos ver o caso de Guerra Junqueiro (1850-1923) que praticou este género na literatura com a “Oração ao Pão” (1902) e “A Oração à Luz” (1904). Estes dois textos podem ser vistos como uma sequência articulada o que levou a que posteriormente os dois fossem publicados em conjunto. A Oração à luz e a Oração ao Pão têm praticamente a mesma estrutura métrica e rítmica: Podem ser vistos ao mesmo tempo como orações e hinos.
Para Fernando Pessoa a Oração à Luz era a “Obra máxima da nossa atual poesia” e recordemos que apesar da diferença de idades ( Guerra Junqueiro era 38 anos mais velho) os dois eram contemporâneos.


Claro mistério
Do azul etéreo!
Sonho sidéreo!
Luz!

Da Terra dorida,
Alenta e guarida!
Fermento da Vida,
Luz!

Eucaristia santa,
Vinho e pão que alevanta,
Homem, rochedo e planta...
Luz!

Guerra Junqueiro, Oração à Luz (1904)

A força da exaltação da luz que o autor bendiz é potenciada com a repetição e rima.
A oração é a manifestação mais assumida e vinculativa para exprimir a crença panteísta de que tudo é luz, movimento e expansão. Sendo que o pão é o produto da luz no seu devir: luz-semente-trigo. O movimento e a luz anulariam as diferenças entre os distintos elementos e todas as coisas (materiais ou imateriais) fariam parte da mesma manifestação: o movimento, a luz e a criação, a exaltação da divindade em todas as coisas (mesmo nas mais densas). A crença panteísta marcou a poesia portuguesa da transição do século XIX para o século XX.
Também nas “Odes Modernas” de Antero de Quental publicadas em 1865, logo na ode inicial está presente  esta fusão entre os diferentes elementos nos versos “o pó tornou-se ideia”, entre o físico (pó) e sabemos toda a série de alegorias cristâs de carácter negativo atribuídas ao “pó” e a “ideia” que seria equivalente à analogia da ligação entre o físico e o etéreo / o corpo e a alma através da intercepção destes dois planos num só: que se poderia traduzir pela manifestação da divindade em tudo o que existe. A Criação, a Luz e o Movimento / a sua Exaltação, Agradecimento e Bendição. Vamos ver que o tema do Panteísmo, vai manifestar-se de uma forma súbtil e indireta em “Comunidade”
 Aparentemente a poesia de Guerra Junqueiro e de Antero Quental afastar-se iam do que seria a poesia realista, que atingiu o seu expoente em Portugal com Cesário Verde (1855-1886), uma poesia plenamente plástica e objetiva. Uma poesia plenamente da natureza. Cesário Verde iniciaria a poesia impressionista e naturalista em Portugal com a publicação do seu único livro, já póstumo: “O Livro de Cesário Verde” editado em1901.
Detenho-me um pouco aqui no cenário da poesia dos finais do século XIX e no seu carácter metafísico porque esta característica vai marcar em muito a literatura portuguesa do início do século XX e vai ser importante para percebermos as formas em que se manifesta o erotismo na criação literária de Luiz Pacheco. Num primeiro plano, a poesia finissecular vai assumir uma influência vital no modernismo português, a geração de Orpheu assume desde logo, e com orgulho, esta influência. Mário de Sá Carneiro refere que Cesário Verde é já um futurista «Ziguezagueante de Europa» e Fernando Pessoa enquadra autores como Antero de Quental, Guerra Junqueiro ou Mário Beirão no que ele considera a Nova Poesia Portuguesa. Ou seja o Modernismo Português mais do que querer criar uma rutura, que claramente  vai fazer, vai incorporar muitos dos elementos da geração anterior e de uma forma humilde incorporá-los na sua geração; por um grande sistema de afinidades o heterónimo de Fernando Pessoa, Álvaro de Campos vai denominar Cesário Verde como o “Mestre” Cesário Verde.
Detenho-me um pouco em Cesário Verde, autor que reunindo todas as características do naturalismo vai conseguir uma impersonalização até então nunca provada na literatura portuguesa, autor de poemas de grande carácter narrativo como “Num Bairro Moderno” ou “Cristalizações” em que a cidade (Lisboa nunca é referida, mas adivinhámos ser este o cenário) é retratada de uma forma cinematográfica e por um olhar deambulante do sujeito poético (como um todo orgânico) é representada ora de uma forma mimética onde o fatalismo está presente, a cidade, o meio privilegiado dos vícios humanos, abusos, degradações, vícios, onde o confronto de classes é mais nítido, onde as doenças como a cólera, a tísica ou a tuberculose circulam e se propagam com mais rapidez e maior força o contágio (É importante dizer aqui que Cesário Verde morreu de tuberculose). A cidade é erotizada, toda ela: na sua latência (a de todos) as pessoas e os espaços construídos pelas pessoas – a geometria desumana e as circularidades, as construções executadas pelos operários, as quedas dos operários, os lugares aliados ao vício como a taberna, o laboratório vital da experimentação humana – em todo o seu expoente, em toda a sua nitidez concreta. Produção poética, a de Cesário Verde que tanto vai entrar, mais do que influenciar, na criação de Álvaro de Campos, o heterónimo de Fernando Pessoa, futurista por excelência. Cristalizações do fluir da vida urbana, ora degradante, ora do lado do delírio e exaltação, ora do lado do tédio – sentimentos que tanto nos levam à Ode Triunfal de Fernando Pessoa como às Cristalizações de Cesário Verde – Às primeiras grandes características do Erotismo: a impersonalizarão e a Unidade: consciência máxima da perecibilidade humana, do ser humano impossível enquanto ser isolado. Consciência também da impossibilidade de comunicação desse todo unitário. Fragilidade humana erotizada no ser humano isolado de uma forma inovadora na poesia de Cesário Verde em poemas como “Contrariedades” em que Cesário Verde começa por dizer “Eu hoje estou cruel, frenético, exigente”, “Dói-me a cabeça” […] /
“Amo intensamente, os ácidos, os gumes / E os ángulos agudos.”

Sentei-me á secretaria. Ali defronte mora
Uma infeliz, sem peito, os dois pulmões doentes;
Sofre de falta d'ar, morreram-lhe os parentes
 E engoma para fora.

Pobre esqueleto branco entre as nevadas roupas!
Tão livida! O doutor deixou-a. Mortifica.
Lidando sempre! E deve a conta à botica!
Mal ganha para sopas…
[…]
E a tisica? Fechada, e com o ferro acceso!
Ignora que a asfixia a combustão das brazas,
Não foge do estendal que lhe humedece as casas,
 E fina-se ao desprezo!
Mantem-se a chá e pão! Antes de entrar na cova.
Cesário Verde: Contrariedades

À semelhança do poema “Tabacaria” de Fernando Pessoa, o sujeito poético deste poema de Cesário Verde assume um estado de espírito: frenético e impulsivo e está dentro do seu quarto e local de trabalho «senta-se à secretária» e revela o processo de criação literária, tem no entanto à sua frente «a partir da visão da janela do seu quarto» a casa de uma engomadeira – que pode ver através da janela: a casa em frente. Tal como a tabacaria, com o seu funcionário, o Esteves do poema de Fernando Pessoa. O campo visual  que os dois poetas referem é percetível do seu próprio local de trabalho: “quarto com secretária”: Local de descanso e local de trabalho, de criação – de laboratório por excelência, porque a vida (que vai ser retratada) está a ser observada e isolada diretamente pelo escritor no seu local de trabalho. No caso de Cesário Verde, este vê e descreve mimeticamente uma engomadeira que sofre de tísica, doença extremamente debilitante neste período. A engomadeira “engoma roupa para fora” no seu quarto diminuto “pobre esqueleto branco”: assim é caracterizada. A mulher em Cesário Verde é quase sempre erotizada ou através da sua inacessibilidade, distância extrema em relação ao poeta que tem consciência da impossibilidade de satisfação do desejo, ou então (quase sempre) através de um erotismo da humilhação, presente em textos como: “Contrariedades” ou “Num Bairro Moderno”. O sujeito poético descreve fisicamente esta engomadeira não a partir dos atributos físicos que o poderiam seduzir, mas a partir das suas debilidades concretas, ela é descrita como sendo “Lívida” e “Mortifica”. O conceito de humilhação aliado ao erotismo tem de ser aqui visto de uma forma mais ampla e abrangente do que aquela que normalmente atribuimos ao termo. “Humilhação” estaria não do lado da submissão, vergonha e inferioridade do lado da dominação em que o humilhado estaria subjugado a uma relação de poder abusiva por parte daquele “que humilha”, mas sim Humilhação aqui associa-se mais à denotação inicial do latim que provém do radical Húmus que nos remete diretamente para a terra, sobretudo a terra molhada ou adubada que o homem trabalha e originará a palavra humildade e homem. O erotismo da humilhação em Cesário Verde manifesta-se não através de uma relação de poder (que afasta) mas através de uma identificação e contemplação (que une). A mulher não é descrita através de uma adjetivação que exalte as suas qualidades físicas, mas através de uma identificação plena do escritor com a sua situação de fragilidade e debilidade física e social – ela deve a conta na farmácia e ela é descrita dentro de um contexto urbano opressor que marca um antagonismo forte com a sua situação de debilidade. A cidade desumana onde circulam as doenças e os vícios, onde os desajustes e desequilíbrios socias se agudizam, se mostram completamente é representada por Cesário Verde como um sítio contrário à natureza e por isso mesmo contrário às manifestações eróticas (normais e saudáveis). A mulher (erotizada através da humilhação) é erotizada também através da sua condição social – é na mulher que a condição social se potencializa (ora como um obstáculo inibidor, ora como um expoente total de liberdade), a condição social das mulheres descritas por Cesário Verde: pobres, doentes, frágeis, que quase sempre fazem trabalhos desumanos – como a regateira (vendedora de frutas) que está presente no poema “Num Bairro Moderno” ou as varinas que vendem peixe pela cidade no poema “Cristalizações”. No texto “Num Bairro Moderno” o narrador vê que um homem discute com a vendedora para que ela carregue as caixas com fruta mais depressa. Mas ela não pode já com as caixas que estão muito pesadas. É então o sujeito poético que a ajuda a carregar as caixas. Esta rapariga ainda jovem é descrita fisicamente à semelhança da engomadeira: “rota, pequenina, azafamada”, descrita também com os “braços magritos” e com um físico desproporcionado devido ao trabalho infantil, elaboração de trabalhos bastante pesados para uma criança que fazem que o seu corpo vá crescendo de uma forma desproporcional “descolorida”, “sem tronco, mas atlética”, “a pobre caminhante” com “o peito erguido”, “as mãos nas ilhargas”. É então que Cesário Verde expande esta manifestação erótica (até então centrada no corpo da mulher) para a escala da cidade. Cinematicamente e desfocalizando agora a ação para um grande plano em que a Cidade é erotizada em toda a sua pulsão vital.
Na estrofe seguinte refere-nos “Subitamente Que visão de artista! / Se eu transformasse os simples vegetais, / à luz do Sol, o intenso colorista; / Num Ser humano que se mova e exista / Cheio de belas Proporções Carnais?”

Em toda esta estrofe Cesário Verde revela o desejo de um exercício impressionista, o de absorver as impressões da cidade (à luz do sol, o intenso colorista) de uma forma transformadora e revitalizadora dessa mesma realidade, os vegetais: transfigurados num ser humano (cheio de belas proporções carnais) ao contrário da vendedora de legumes, cujo trabalho infantil impede um crescimento equilibrado e saudável. A cidade figurada do lado do patológico torna-se subitamente reconstruída, recriada à escala humana, erotizada, ela é recomposta “por anatomia” pelo olhar criador de Cesário Verde – exercício impressionista em que os diferentes frutos, vegetais e hortaliças nos aparecem subtilmente sob novas formas “sob um novo corpo orgânico” formas de uma pessoa “através dos tons e das formas” Cesário Verde descobreUma cabeça – numa melancia”que quase temos a impressão de ver. Aparecem-nos como num quadro “boíam aromas, fumos de cozinha” “ e nuns repolhos – descobre seios injetados”.
Atentemos um pouco no verbo “descobre” que retira assumidamente uma ação criadora ao autor “segundo ele”, o sujeito poético “Descobre” – O que implica a já existência desta anatomia revitalizada (das partes do corpo humano presentes nos frutos e nos vegetais) – Natureza que se manifesta ao autor: “Bons corações pulsando no tomate / E dedos hirtos, rubros, nas cenouras” – À Luz do Sol, o intenso colorista, determinadas posições dos frutos adquirem novas aparências que, pelo exercício de revitalização, são já novas realidades que o poeta apenas “Descobre” . Diríamos que esta natureza pulsante e erotizada seria não só a extensão do feminino mas a extensão da vida da cidade: pulsante, imprevisível, ganhando, sempre ganhando novas aparências que são já novas formas. A cidade erotizada aparece-nos concreta, definida, física, representada através de um corpo feminino. Cidade recomposta por anatomia – como assume diretamente Cesário Verde expondo o processo criativo.

E eu recompunha, por anatomia,
Um novo corpo organico, aos bocados.
Achava os tons e as formas. Descobria
Uma cabeça n'uma melancia,
E n'uns repolhos seios injectados.

As azeitonas, que nos dão o azeite,
Negras e unidas, entre verdes folhos,
São tranças d'um cabello que se ageite;
E os nabos--ossos nus, da côr do leite,
E os cachos d'uvas--os rosarios d'olhos.


Há colos, ombros, bocas, um semblante
Nas posições de certos frutos. E entre
As hortaliças, tumido, fragrante,
Como d'alguem que tudo aquilo jante,
Surge um melão, que me lembrou um ventre.

E, como um feto, emfim, que se dilate,
Vi nos legumes carnes tentadoras,
Sangue na ginja vivida, escarlate,
Bons corações pulsando no tomate
E dedos hirtos, rubros, nas cenouras.


Cesário Verde, Num Bairro Moderno.

(Contínua na publicação seguinte) 

A nossa janela

A nossa janela dá para o Brasil inteiro
(Às vezes ele parte-se ao meio)
Às vezes sou tão violento como uma menina a correr pela praia
com o sol líquido a escorrer-lhe pelos olhos.


Nuno Brito.

Novas Cartas Portuguesas

Segunda Carta II

Conto-vos, entretanto, a história da mãe dos animais, mito de uma tribo de índios da América do Norte – e que paixões nostálgicas e sem remédio terão inventado os índios nas suas reservas, morrendo aos poucos e os seus poços de petróleo, às vezes, e seus fatos usados pelos hippies, e sua paixão agressiva, agora, na prisão de Alcatraz. – Mãe dos animais foi a mulher abandonada pela sua tribo, que se dispunha a fazer uma migração difícil, na altura em que ela paria; a mulher ficou para sempre errandonos bosques, ensanguentada e medonha, Mãe dos Animais, protegendo-os dos caçadores; e o caçador que a veja, com o susto tem uma erecção, e a Mãe dos Animais viola então o caçador, concedendo-lhe a seguir um sucesso infalível na caça.

E lembro-me ainda, bastante mal, da história do homem que encontrou uma semente debaixo da presa se um javali, e plantando a semente dela nasceu um coqueiro; e tendo o homem ferido a sua mão, o seu sangue caiu sobre a flor, e da flor ensanguentada nasceu uma rapariga, que foi dançar à praça pública, onde os homens da aldeia a mataram, tendo-a enterrado no sítio onde dançava; a deusa que protegia aquela gente retirou-se então para trás das estrelas, e passou a recusar o seu auxílio. Lembro-me apenas destas coisas, sem nomes nem detalhes, mas lembro aquilo que me interessa, sem dúvida e pergunto-me se a Mãe dos Animais se vinga protegendo os animais, violando os caçadores ou dando a este sucesso infalível na caça; e pergunto-me quem destruiu a rapariga que dançava, se aqueles que a mataram, se o outro que dizia tê-la gerado do seu sangue numa flor. Pergunto-me, enfim, sendo a força-paixão da Mãe dos Animais o seu errar pelo tempo, qual o seu exercício protegendo os animais, se nostalgia do mundo ou vingança aos homens, violando os caçadores, se vingança ao mundo ou nostalgia dos homens, dando sucesso na caça, de si ou para si; sendo a dança a paixão da rapariga, contra quem ou quê. Será desnecessário acrescentar que o meu exercício é o da vingança; que quem está ferido não se recolha, antes despeje o seu sangue no mundo. Porque o objeto da paixão é mesmo pretexto, pretexto para nele ou através dele, definirmos, e em que sentido, o nosso diálogo com o resto.

BARRENO, Maria Isabel; HORTA, Maria Teresa; COSTA, Maria Velho da – Novas Cartas Portuguesas. Lisboa: Dom Quixote,2010.




Tigre de Ouro

"O único mistério é haver alguém que pense no mistério"

Fernando Pessoa

Lorde protector: Escrevo-te para dizer que os teus castigos não chegam aos calcanhares dos humanos.

Os teus prazeres são tão pequenos, as tuas frutas e flores não produzem drogas suficientemente fortes - precisam de ser modificadas pelo homem para provocar alucinações verdadeiras

Tal como Papini o azul do céu mete-me nojo

De todas as figuras de estilo a hipérbole é a que menos me enoja …
Não viverei tempo suficiente para ver a musa de Clio a fritar as pernas aos historiadores pouco metódicos, antes disso arrebento de tanto acreditar no Homem
Tal como Galactus a minha fome não se sacia nem com uma galáxia inteira, principalmente depois de saber que dois corpos nunca se tocam…

De todas as figuras de estilo a hipérbole é a que menos me enoja

E para quê O mito do eterno retorno
Se amanhã voltará a haver rojões à portuguesa?

não descansarei enquanto não for inventada uma cadeira eléctrica que aproveite o uso das marés para produzir um choque tão forte e intenso que nunca mate - mas que frite lentamente todos os que se inspiram no mar para produzir poesia –
Os corações dos poetas atirem-nos aos porcos
e com os seus versos embrulhem as bolas de berlim

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Amo a inutilidade - A desintegração --- tudo que é inútil me excita violentamente

Estou triste, tristíssima - por não ser a Suécia inteira
e choro lágrimas de sal que chovem sobre Copenhaga - Tapo o Sol com as minhas mãos de nuvem e trago a tristeza ao mundo...

Amo-te por seres incompleto LORDE –

Nuno Brito.

quarta-feira, 21 de agosto de 2013

Sunset Boulevard

Ode Gente*

O tempo, perverso em não existir, conjunto de limões em fuga,
com a sua saia de séculos, a masturbar-se lentamente,
A vir-se Em todas as direcções:
Depois mais rápido moldando a cara dos lavradores
Ofegante na sua vontade circular
Cilíndrico na espera – a subir o Chiado a descer o Chiado,
A entrar em cada casa, a passear na Afurada – a saber-se coisa-nada
ele
dá-te a mão, Espera,
Pinta frescos na sala, detiora os frescos da sala
tacteia nas tuas costas uma vontade nova, muda essa vontade
cria uma nova e uma nova e uma Nova
Escreve a lápis número 3 na sua sebenta:
“Este país não é para velhos” E masturba-se devagar e
depois Rápido: E adora Cláudio Magris e toda a Antena –
e acorda com Sebald e deita-se com Sebald, viola as filhas da revolução
e é manhã e insónia a entrar em todas as tabernas
a tingir de amarelo os calendários Michelin
a crucificar este, a encher de prazeres aquele, a masturbar-se
ciclicamente até ser só Vontade de ter passado:
Tempo-Cidade, tempo-cavalo, tempo-proletário,
tempo-homem, tempo-mulher, tempo camponês que dá a mão, tempo que escreve ensaios, tempo que canoniza –

Tempo que chora leite condensado para
cima da Sebenta, com o seu rosto quadriculado que é só medo e está passado –
………………………………………………………………………………………………………
Tempo que é União e fala por nós, que tenta chorar mas só lhe sai musgo dos olhos, fresco e verde como o que cresce nas fontes de Raguzza, que dão uma água carregada de ferro (Resta-me a Sinceridade e a Saliva de todo o mundo)


***

O Tempo a cavalgar com Zaratrusta, trusta trusta,, a procurar um efeito sonoro nos seus versos: Em busca deste ou daquele recurso estilístico que dê profundidade à rima imperfeita – a Injectar no peito uma vontade nova, um Sol líquido entre dois seios que são também montanha, onde descansa o olhar –
vários olhos que vêm os estorninhos dançarem numa nuvem única, que parece uma cabeça de Medusa, em permanente mutação: Criando novas formas do cabelo, novas expressões no sorriso …………….. Uma nuvem única que faz amor consigo própria, como se fosse com um filho por cima dos Campos de Marte - uma nuvem-estorninho a acompanhar Grieg na subida e a acompanhar Grieg na descida: Nasceu uma Estrela com baton a mais –


A Torre de Babel, as torres do Aleixo
A torre latina que só espera,
a doçura do
teu queixo – À procura da T-mésis per-fei-ta
Um triângulo com as suas três pontas acesas, que bebe demais e tem medo de cair na entropia, um triângulo-cio com problemas de erecção.

É só doçura a torre latina que cai, Gémea do silêncio e da solidão;
A nossa língua não é esquecida: Evoluirá até à deformação perfeita –
O Tempo a acender todos os interruptores da Calábria, a fechar os olhos aos missionários que merecem o descanso: A dar-lhes um sentido porque todas as coisas devem ter sentido, seja ele único ou múltiplo: Seja ele cavalo, cidade-industrial, pastor alemão, vidro, sebenta, aguardente, erecção, uma viagem a Nova York, a Grécia Inteira; seja ele vento, microscópio, lixívia de marca branca, rebanho de ovelhas, medo do escuro, uma canção de amigo, uns olhos verdes e tristes – Seja ele, fazer obras num talho, mudar de instalações o sapateiro, o preço da gasolina, o preço do trigo, o que o colhe, ou o que o come…

***

Aqui não há espera: Come o teu queijo gordo e guarda que o teu lamento não seja eterno ………. Abre todas as janelas e deixa que o mar entre em tua casa – Nasceu do lodo, a simetria, a Vontade nova, em tudo nova; Não lhe quis dar um nome. Por superstição, deixei-a também flutuar como fumo de um cigarro que desaparece e é só instante. Deixei-o ir acordar os camionistas que seguem por estradas sem curvas, e precisam de dormir ……………………………… O que nos é estranho é adocicado e múltiplo, o que nos é estranho é o que Entra … Digo Entrar. Entrar Verdadeiramente::
Fomos alguém à janela com as suas pernas de cimento, fomos o pão negro que comia, um país na direcção do vento: O meu trabalho é partir diamante com a boca e encher de calmantes toda a Escócia e a gente austral. O meu país é só vento e aproxima o bem do mal: O meu país faz compotas de petróleo cristalizado, compotas de moral e de cimento que acordam os seus filhos pela manhã, compotas que indicam uma rota nova, que pedem boleia aos camionista, que têm medo de não passar bem a mensagem – É sua missão passá-la … Dizem - Bom dia! – A este e aquele que passa, que tiram o chapéu educadamente; Que abrem os seus corações aos estranhos nas estações de comboio. Compotas que desejam mesmo um bom dia, a este e aquele viajante e só esperam que a sua rota seja perfeita.

***

Espero que alguém se deite comigo, e não saiba já se está acordado ou a dormir e que a fronteira entre a vigília e o descanso seja só um novelo com que brinca um gato, em tudo exílio e olhos verdes, um gato negro que entra e sai das torres latinas. Um gato com o sonho Americano e a Dormir por si adentro.
Manter vivas todas as Frentes e velar para que nunca se apaguem – Calcar um triângulo de espera - gelatinoso como o cancro da mama - Um Triângulo que incomoda os séculos, um triângulo que minga quando as pessoas se abraçam: um triângulo que acorda e cavalga, um triângulo que sabe três línguas e assassina por trás. Um triângulo-Solidão.

***

Em métrica antiga abrimos todas as portas para que o rio passasse, negro e gorduroso no seu leito, a dizer que o país não se mete em sarilhos, em cada esquina um tétrico coro canta. Em cada esquina essa perda de cabelos dourados, wireless latino e agudo, entra em todos os jardins, come os teus figos maduros, Quê?
Com uma flor na lapela que é o seu lamento,
A criar estilos, a passear o cão, a ouvir o concelho de todos, a dançar regeton

O Tempo a ouvir Sitiados
A talhar a pedra - a ser já só pedra e dados
a construir sólidos telhados num labirinto de braille


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O Coro tétrico canta:

Tudo é febre e mudança
Panteão e virilha a arder,
Tudo é promessa líquida que muda,
e manequim a ferver

Tudo é perspectiva múltipla e
nos exige a atenção,
Tudo é língua, tudo boca ,
Ode como um cão!

Esculpe-me o cabelo, o sexo e o antebraço,
Recheia de chocolate os ouriços do mar, Dá-me a solução num único abraço,

Adoça e esculpe-me os limites: Faz deles, nenhum.

*******

Acende um Farol em cada praia. Não esperes os navios. Entra em todos os seus porões sem aviso - Recheia os capitães de Susto – Enche os Porões de riso e espasmo… Penteia-os com gel de golfinho. Sempre estive perto da loucura, se não fui ela própria, sempre quis ter bigodes púrpura e ser só a chuva lá fora –

Nunca quis ser um poeta, só quis ser um navio em chamas: Um navio violado pelo seu tio, todas as manhãs e todas as tardes, um navio que há noite lê Bataille - Um Navio que se afasta dos outros navios se não tiver cuidado, um navio que só quer ser ponte, limite e União. Um navio que com os seus óculos de Sol, escreve na sua rota: - Não existe o que se escreve nas rotas -
Um navio que mesmo assim escreve e insiste em escrever, seja no osso de uma namorada morta, seja no computador, seja em rolo de papiro, em pergaminho, em papel, em folha de gelatina, em mármore, em porta de casa de banho, em quadro (pode ser com unhas ou com dentes) em areia molhada, no braço em tatuagem, nas costas em tatuagem, num deserto mexicano, num campo relvado, a chantilly num bolo de chocolate, no lodo, na lama, no gelo com patins, na cerâmica, na argila, no fogo, desenhando um rasto de gasolina, com urina num ladrilho seco – Não interessa o suporte, mais ou menos perene, ele só prova a nossa inocência, a nossa necessidade de partilhar - A literatura, só pode ser União …………… Um navio que escreve rápido no ar e em fumo de cigarro (são precisos bons reflexos e ante-braço forte) – A Literatura tem de ser União –

Nunca quis ser um poeta, sempre quis ser um espelho colocado no centro da Austrália, sempre quis ser a “fome de gente” que os espelhos têm - Pequenos fios dourados, Guardar uma coisa qualquer, um hipermercado, um segredo, proteger essa coisa dos lobos; Ser vários cangurus espalhados pelo deserto reflectidos na minha cara fosca, de um e do outro lado, uma cara fosca que é só deserto espelhado carregado de nuvens vermelhas no vidro e na sede de ter Muitas Línguas - Deserto Compositor a Criar um Requiem em Braille para que os cegos cantem uma Osana Perfeita – Para que os cegos a vejam multiforme a Afastar todas as nuvens carregadas – Para que a Fuga seja só ficar – Deserto a vestir as suas cuequitas com motivos ursinhos, a olhar para mim, espelho que não dorme porque abre todas as gavetas, todas as vontades para tirar de lá meias de licra – Sou só a vontade dos teus olhos. A Escócia a abrir trincheiras cor de rosa, África a sonhar com um incesto – Em tudo Maior –
A calçar as All-Stars - A jogar playstaition com a boca cheia de limão* Deserto a cavalgar a abrir portas – Não interessa a escolha do caminho, mas a intensidade com que se o percorre, seja ele um ou em tudo múltiplo e comprido. Deserto a abraçar deserto, deserto a espalhar-se vermelho na perda por deserto e deserto, deserto com sede de pessoas.

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Nunca quis ser um deserto, sempre quis ser um espelho ou um conjunto de limões _ Se fosse uma mulher, paria um espelho de espuma – Sei que a espera é o próprio Inferno, senão o Diabo Inteiro, sou o arquitecto de um labirinto:

Comer o labirinto
Sair
Ficar dentro – O Arquitecto é uma sombra e quer-se perder e espalhar pela praia ao fim da tarde, Criar a Sua Perda, um labirinto doce com muros que são folhas de gelatina, um arquitecto que só te quer a ti, todas as saídas e todas as entradas. A mais doce ária que é o azeite negro a escorrer pela boca de um paralítico. Esculpe-me o cabelo, o sexo, o antebraço, dá-me um abraço triplo, tira-me todo o ar, dá-me todo o Ar:
A noite com as suas cuequitas apertadas uiva por Maiakovsky
a língua da noite adormece os pescadores

Gosto de te ver sorrir

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O Riso é o Gerador Único do Universo,
só ele, quando, tudo o resto falha, permite que as estrelas,
(infanticidas por natureza), se mantenham vivas e não cortem as suas pontas,
Que as ligações frágeis, não percam vida e se extingam até à anorexia, perdendo luz e força,
ou se arrebentem por dentro sobre o seu próprio eixo desatinado (desatinando para aqui e para ali) Só o Riso é Deus, só ele cavalga e Molda verdadeiramente as caras,
só ele cria luz e espelhos de espuma, só ele goza a poesia, só ele fica sozinho, só ele dá vida.
Quem escreve “O Fim da História”, mais não faz do que a começar. Sou um recurso estilístico a olhar-se ao espelho, a beber chá verde pela manhã, a empapar o cabelo em gel …

Sou a vontade, em tudo malhada, de te ver sorrir*
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Lambi o sexo a um relâmpago de virilhas acesas
os seus pintelhos tornaram-me a boca da cor do azeite,
alguns engoli e escorri para os pulmões, vi o relâmpago a lavar os dentes e a cair por cima de uma biblioteca

a literatura (a primeira morte) só serve para unir – os fios que usa são dourados,
é também dourada a sua paciência e a sua vontade de conhecer o inferno.



Ode em mutação, poema recheado de vento, poema que cavalga e é lusitano - Que é só sede e é só vento, (vontade de rir de tudo) - Poema em rima cruzada a atravessar todos os rios, relâmpago a guiar numa auto-estrada em direcção ao sul – Poema a ouvir Belle Chase Hotel com a boca cheia de cerejas negras – Ode que canta um país que não quer amanhecer, e que é brisa e triste lamento, poema que é olhos teus e se alimenta de riso. Ode cão Ode cimento.

Sempre quis ser uma cidade industrial escocesa que Turner não conseguiu pintar, sempre quis ser o acordar dos operários, que calçam as suas ceroulas, afastam o medo (Criação Absoluta e único Motor de tudo) Todos os mails não enviados que recheiam a Rede de pontas gelatinosas e fazem explodir as estrelas – De tudo o que deve ser dito com o palato aceso.
Ode Gente, Ode canção
Ode lixívia que limpa uma campa
Ode-saia e alexandrina na rima, ode com dentes podres
viciada em cocaína – Ode Gente dentro de Gente, Ode cantina,

Ode canção, perfeita no gesto – Ode hospedeira da Easy jet, Ode-gente que chove, Ode-Nuvem que tapa e destapa as cidades Belgas, Ode a abrir os frascos de mel todos, a meter-te pirilampos nos cabelos, a acender de escuridão a noite – Ode que chora quando morre o seu amigo, Ode que brilha quando morre – O Mundo começou agora e já está na sua varanda de Susto uma rapariga com a sua saia carregada de vermelho – Ode Saída a encher os pulmões de relâmpagos - Um país Ocidental que nasceu numa paralítica dança em construção.

Ode tinta num copo de espasmos, Ode de boca ao lado que precisa de um amigo,
perversa na fuga e na sua chegada,

              - O amor é como carne.

                                                                            Nuno Brito, Duplo-Poço. Lisboa: Hariemuj, 2012. 

terça-feira, 20 de agosto de 2013

Lars Von Trier - Os Cinco Obstáculos


Lars Von Trier, The Five Obstrucions. (2003)

Lídia Jorge - O Cais das Merendas

(...)
Começou então o primeiro party. Alinharam-se uns a seguir aos outros, palavras discretas e grande entendimento, de ali tu e aqui eu, além o Quinas, depois o Edmundo para ver se fala o rapaz, e pareceu a todos assim sentados, vendo as bocas dos sacos e as tampas dos cestos descobrirem-se, que a vida era uma coisa doce, mansa, muito pomba, muito pomba. Ah, meus amigos, desçam as pálpebras e vejam. Sintam para dentro com os olhos da alma. Tão bons estes domingos, estes encontros civilizados, estas conversas sobre o nosso métier, o nosso entretém, vejam, vejam para dentro e não nos falem do passado, por favor. Yes, not the past. Rematava Sebastião Guerreiro já de olho alongado sobre o local da praia. Mas sendo assim, em sua opinião, devia dar-se início  à coisa. Simplesmente as mulheres ainda zelavam com o olhar as asas de alguns cestos onde paninhos brancos e lavados estavam muito direitos sobre. Um riso de simpatia. Era como se contivessem dentro, ajoujados, meninos de peito, chuchas na boca, dormindo os seus soninhos férteis entre mamadas. Ali eram pastéis de salsa, aqui eram doces. Fi-los de manhã para que ainda viessem quentinhos do forno. Gostamos deles dentro de sainhas de papel plissado com pérola no meio, e ficam bem, mesmo a matar, postos sobre esta bandeja de casquinha que também trouxemos. Adoro as coisas feitas assim a preceito. We love. Era a Zulmirinha Santos e Catrinita Mendes. Decompuseram então os braços em gestos comedidos., alcanças e toma lá, escolhes e passas, mais um bocadinho, sim obrigado. A vida tão boa, tão doce, tão mansa. Agora por favor, retirem a vista do mar e ponham-na aqui.

Era assim tão doce e tão pombinha.

(...)


Lídia Jorge – O Cais das Merendas.Lisboa: Publicações Dom Quixote, 1995.


segunda-feira, 19 de agosto de 2013

Sylvia Plath - Os Manequins de Munique



A perfeição é terrível, não pode ter filho.
Fria como a respiração da neve, põe um tampão no útero


Onde os teixos sopram como hidras,
A árvore da vida e a árvore da vida

A libertar as suas luas, mês após mês, sem nenhum objectivo.
O fluxo do sangue é o fluxo do amor,


O sacrifício absoluto.
Quer dizer: não há outro ídolo senão eu,


Eu e tu.
Assim, no seu sulfuroso encanto, nos seus sorrisos


Estes manequins dormitam esta noite
Em Munique, a morgue que fica entre Paris e Roma,


Nus e carecas nos seus casacos de pele,
Chupa-chupas de laranja em pauzinhos de prata

Intoleráveis, ocas cabeças.
A neve deixa cair os seus bocados de escuridão,


Não se vê ninguém. Nos hotéis
Mãos estarão a pôr os sapatos


À porta dos quartos para que os engraxem com carbono
Neles hão-de amanhã entrar enormes pés.


Ó a domesticidade destas montras,
As rendas de bebé, as folhas verdes de açúcar,


Alemães toscos a passar pelo sono metidos nos seus stolz largos.
E os telefones pretos no descanso

A brilhar
A brilhar e a digerir
Emudecidos. A neve não tem voz.


Sylvia Plath, Ariel - tradução de Maria Fernanda Borges.


Jorge de Sena - Conheço o Sal


 Conheço o sal da tua pele seca
Depois que o estio se volveu inverno
De carne repousada em suor nocturno.

Conheço o sal do leite que bebemos
Quando das bocas se estreitavam lábios
E o coração no sexo palpitava.

Conheço o sal dos teus cabelos negros
Os louros ou cinzentos que se enrolam
Neste dormir de brilhos azulados.

Conheço o sal que resta em minhas mãos
Como nas praias o perfume fica
Quando a maré desceu e se retrai.

Conheço o sal da tua boca, o sal
Da tua língua, o sal de teus mamilos,
E o da cintura se encurvando de ancas.

A todo sal conheço que é só teu,
Ou é de ti em mim ou é de mim em ti,
Um cristalino pó de amantes enlaçados.

                                                                                         Jorge de Sena

                                                                                                                         

sábado, 17 de agosto de 2013

Antônio LaCarne: Studio Baby

aí eu não quis envelhecer mais alguns anos,
nem contemplar a mesma fuga (válvula de escape),
pequena dose de amor que você deixou secar ao sol por culpa de algum erro, noitada, drogas, lance obscuro, carinha de anjo suspenso,
é que você trancou as portas e eu me cansei do mundinho
como no filme em que a balzaquiana quis desistir de tudo enquanto lavava os pratos, molhava as plantas, caía adormecida no sofá,
faltaram plumas, mistérios,
organização das roupas íntimas, ressaca ao entardecer, relações cortadas,
o vento numa desarmonia que desajustou a cabeça, os cachos,
o filme noir,
whitman whitman whitman que me deixa mais louco na transversal,
o ódio platônico,
o jeans que tem caída melhor nele do que em mim,
grana guardada no bolso, a reação íntima, intimidade procrastinada,
sexo entre cavalos do mesmo naipe e eu ainda preciso muito que você seja
uma pessoa sozinha,
relevante no mundo,
deixando alguma história após a morte,
caindo de quatro enquanto é tempo, forçando a barra,
pois a gente nunca consegue se libertar de uma determinada pessoa,
a pessoa em questão,
você sabe o nome e pensa e vive quase eternamente,
pois o mundo é nosso pequeno segredo filho da puta,
sexo monocromático que não teve estampas,
apenas lantejoulas.
                                                                                Antônio LaCarne, 


João Cabral de Melo Neto

O mar soprava sinos,
Os sinos secavam as flores,
As flores eram cabeças de santos.

Minha memória cheia de palavras,
Meus pensamentos procurando fantasmas
Meus pesadelos atrasados de muitas noites.

De madrugada, meus pensamentos puros
Voavam como telegramas;
E nas janelas acesas toda a noite
O retrato da morta
Fez esforços desesperados para fugir.


                                                                                        

João Cabral de Melo Neto, Pedra de Sono.

sexta-feira, 16 de agosto de 2013

Antônio LaCarne

leather

todas as bruxarias que você construiu
despencam sobre o meu jeans culpado de tudo,
desabotoei a camisa & me pus sobre travessas de inox
tão verticais quanto o beijo que você morde & assopra,
aí sou a pessoa ferida mais legal do mundo,
nego a violência & as páginas de ménage à trois na internet,
mantenho o carão diante dos arbustos que você cuspiu,
o girassol de uma mão que me afaga as lágrimas,
rasgação de amor que não me protege das rugas,
os centímetros que fariam de mim
a pessoa mais sexualizada do universo.

peço um cigarro e você não tem,
eu percorro a existência da noite & me tranco em banheiros,
do bolso possuo as armadilhas lindinhas
que se resumem em uma, duas gramas da lucidez
pré-fabricada pouco depois dos dinossauros,
você também não me esquece,
critica o fato dessa intolerância esquizoafetiva
ser publicamente devorada nos livros que você não escreveu,
por isso morro de vontade.

                                                                                                                     Antônio Lacarne