segunda-feira, 12 de setembro de 2011

Ivan Strpka

Pegadas de pássaros


I.

Tudo está na margem. A árvore
Diverge de si própria por baixo do peso do anseio
Para gerar uma nova árvore,
Dentro da maçã uma nova maçã se gera,
As portas estão cheias de portas
e o dia faz nascer
outro dia sobre o caminho semi-cego.


II.


A minha cabeça no jardim está cheia de neve que irá cair
Pegadas de pássaro guiam-nos através dela, simples e indiscutível,
de margem a margem.
Por baixo da neve a concha azul rebenta.


Adeus, olhos azuis

As minhas orelhas estão cheias
do refluxo suave do mar.
ouço os cortes do fundo
dos corpos vazios
e do vidro indigo



O passado de uma pausa


E a casa era muitos-cantos
E desconhecida e branca
Transparentemente estrangeira
(sem pegadas)

Um caminho de terra para as coisas cegas
corre através da relva…



Tudo na concha


1/

Tudo na concha – Disse a criança. Pelos nossos objectivos deixamo-la tomar isso como um facto.
Nós vamos emergir do ovo. Nós vamos emergir da metáfora. A incessante disputa com a concha é a força motora dos nossos dias. Eu vi esse dia antes de mim. O ranger dos pés em prosa, compondo e descompondo numa sucessão do estremecer dos fragmentos.
Essa confusão da vida de areia rodopiante.

Eu vejo as tribos que não dormem dos guardiões da concha, espalhadas na areia que arde e nas bocas do desfile que assobia. Os seus cotovelos secos e afiados, as suas pálpebras afiadas, os seus olhos-brancos pequenos através do silêncio nervoso da miopia. As suas relações escondidas com os jogadores do jogo que prolifera, que abranda até ao infinito.
Na luta pela imaginação há uma luta pela concha. Luta com a concha. Luta na concha.


2/

A janela está iluminada. Fora do crepúsculo que diminuí a cara empurrada pela sede avança de forma incerta. Um perfil frágil desenha-se a si próprio sem claridade. A cara subconsciente de uma mulher, levemente arredondada. Como se tivesse surgido de si própria. A altura inominável, recorrente nos nossos horizontes de cada dia. Esse crescimento vizinho onde há um depósito de lixo, armazéns ou antenas de televisão. Ou simplesmente esse silêncio nu da pedra que vêm, o fim do mundo e a erva daninha.

3/

Tenho as minhas coisas empacotadas. Coisas. Só agora reparei em como fui absorvido pelo dia. As coisas estão ao meu lado, mas eu não serei capaz de descrevê-las exaustivamente. Mergulho de cabeça numa corrente brilhante. Vejo um tremer distinto aos pés da inominável altura. De repente ela atravessa-me como uma resposta desarticulada. O que realmente pode ser uma parte indissociável da original de uma pergunta auto-resposta.


4/ As Coisas estão empacotadas. Ainda tenho de atirar alguns grãos aos papagaios. Ciao. Vou deixar uma mensagem na porta. Aí ela vai brilhar através do buraco da fechadura. E dá a impressão que eu não emerjo de dentro, antes pelo contrário, eu queria entrar.
E actualmente é esse o caso. Tão perto da verdade, devia passar à frente, nas faixas de Fermi, Mallory, caracóis cortados e caravanas sem nome. Mas não vamos atirar areia aos nossos próprios olhos. Vou trabalhar. Sou um viajante, sou um cartógrafo, sou um caminhante de estrada. Sou um detentor. Eu sou.
O que eu vou relatar. Eu sou tu. E devíamo-nos conhecer.


5/ Tudo está na concha. Cruzamentos, estradas, auto-estradas, ladrilhos e pavimentos. Eles começam em todo o lado. É onde tu estás agora. E em todo o lado há um caminho que parte. Quando o estás a pisar, ou quando estás a fazer o caminho trilhado. E sempre ele leva-te a através de ti.

É bom parar à beira de uma árvore sem frutos. Dar uma volta pela relva fresca. Beber água de uma garrafa do deserto e observar sem som as caras dos companheiros da jornada.
Oxerpa por exemplo. Nos chamamo-lo assim por causa da sua forma de andar. Mesmo lá em baixo nas planícies argilosas ele caminha sempre com uma ligeira inclinação para a frente, como se estivesse a escalar uma montanha. Aqui na planície, ele revela-nos a cada passo uma parte de uma verdade íngreme. Ele conhece-a mas não está a pensar nela . Ele é taciturno. Sempre avança em frente.
Ao lado da árvore sem frutos eu calculo a posição geográfica. Nós estamos precisamente a 730 graus da expansão para sul da concha.

Ivan Strpka

Tradução de Nuno Brito - Literature Across Frontiers. Vila do Conde 2010

André Domingues

Em comunhão com ninguém


Um convento fica longe da necessidade do mundo,
mas o amor fica ainda muito para lá do convento.
É como se não houvesse estradas para amar, ou pés
suficientemente descalços sobre as incandescências
da ausência viva,
e a reclusão no amor fizesse ela própria votos
de pobreza extrema,
escrevesse um diário da ingratidão
com o desmazelo,
e chegasse a uma fórmula de desviver
honestamente em comunhão com ninguém.

sábado, 10 de setembro de 2011

Sonata Paliulyte

Variação de um tema A Raposa e o Príncipe


Quando eu cavar o meu covil
Serei uma raposa indomável
Pêlo eriçado
Orelhas acesas
Vou mostrar os meus dentes
Vou aguçar as minhas garras
Vou congelar em silêncio
E não vou ficar
Só os meus olhos fluorescentes
Vão acender a densa escuridão
Apenas o contínuo
Som do rosnar
e os dentes brilhantes
para assustar aqueles que passam e ninguém
nem o mais pequeno
nem o príncipe ou o mendigo
tentará cativar a minha amizade
e ninguém será suficientemente corajoso,
para me domar
e golpear
o meu pêlo frisado
(nem despenteá-lo)
Aqui eu vou morrer
com um sorriso de raposa
os meus pequenos truques
irão levar a fim as suas tarefas
um cão de caça vai segurar o corpo
e o caçador
vai sacudir o lixo
da sua pele
e escova e golpeia-o, na penugem
a sua cabeça confirma:
- Esta foi a mais bonita
e a mais não-raposa de todas as raposas
pobrezinha, desapareceu tão cedo.



Auto-de-fé



O céu calmo
arremessa pedras de granito
para dentro do silêncio mudo

Na palma da mão fria
Os cactos de vidro
começam a falar.

Por cima do lento redemoinho,
branco tão branco
flocos de neve em colisão.

Na abóbada do céu
caracóis de negro
as nuvens ganham forma

devagar, devagar,
na palma da mão húmida
eles apressam-se a morrer


e os anjos terrenos
experimentam o tamanho
dos seus robes negros.


Tradução de Nuno Brito

quinta-feira, 8 de setembro de 2011

As Abelhas produzem sol


As pessoas segregam futuro
queremos aquilo que as pessoas segregam:
a vigília das montanhas, o vento mais quente do sul,
a manhã húmida e a certeza da expansão,
os raios de sol e o riso como ponte
a parte mais quente da sede antes de haver água.

As abelhas produzem sol
o Sol produz açúcar
as pessoas segregam futuro,

Queremos aquilo que as pessoas segregam.

Nuno Brito.

Leonard Cohen

... Despe-te da memória e ouve o fogo à tua volta. Não te esqueças da memória, deixa-a estar num sítio precioso com todas as cores que precisar, mas num outro sítio, iça a tua memória no Navio do Estado como a vela de um pirata, e responde à chamada do presente. Sabes como fazê-lo? Sabes como ver a acrópole do mesmo ângulo que os índios que nunca tiveram nenhuma?...

Leonard Cohen, Belos Vencidos

terça-feira, 6 de setembro de 2011

Maria Quintans

a noite morde-me o tímpano

mãe

e sempre a tua mão me liga ao rosto

mãe

a tua pele é o meu cheiro

mãe

a porta é um jardim sem fim

mãe

e os dedos a constelação dos teus olhos


mãe
minha

Literatura e Começo

Escrever é inscrever no interior de um círculo o exterior de todos os círculos
Maurice Blanchot



A literatura está em todo o gesto humano, em toda a representação ela se manifesta, manifesta como aparição: Lemo-nos uns aos outros, cheios de sede, com os lábios trémulos, enquanto humanos. Segundo Heidegger qualquer manifestação é sempre um não mostrar-se. A literatura manifesta-se nessa elipse de tudo o que está escondido na condição humana, um olhar, um gesto, uma união. Independentemente do suporte, ela apresenta-se, revitaliza-se e renasce; apresenta-se ao homem vindo do próprio homem e ultrapassa-o, faz o homem superar-se a si mesmo, incorporando toda uma literatura anterior. Nada se esgota ou anula, pensar que tudo está feito é tender para a morte. A civilização sustem-se na literatura, ela pode ser oral, gestual, assente em qualquer suporte por mais volátil e perene que seja. Pelo fim do símbolo, ela pode ser só representação sem representação: campo/contra-campo: pode estar no olhar, num atirar um pau para a água, no regar os girassóis, em cada acto ela se revela, se mostra, se recria, se cruza com outras realidades para tecer novas ficções. Satoshi Kon alerta-nos para o facto da realidade prover da ficção: no seu novelo contínuo, a realidade tece-se de ficções, as sombras provam-nos que há sol.
A literatura exige o cruzamento constante de tempos e espaços diferentes. Tempo e espaço podem não chegar a caber na literatura, ela ultrapassa-os. Quando pensamos que um género literário se esgota, uma matiz de pensamento se esgota, logo ela se revitaliza, incorporando elementos do passado e do futuro. A frase de Blanchot por muito paradoxal que pareça e sendo uma afirmação circular mostra as inúmeras portas que se abrem diante do fenómeno literário: “inscrever no interior de um círculo o exterior de todos os círculos” é tornar o impossível possível (há limites, o círculo: a linguagem, o pensamento humano, a cultura em geral), mas escrever poda esses limites, anula-os quase por completo, pelas portas que abre, e são muitas: anulam-se os condicionantes, as barreiras do pensamento humano. O salto é difícil mas é sublime e está presente apenas na vontade de renovar, de incorporar o erro, de acrescentar, e veja-se erro no sentido mais positivo da palavra: só ele faz avançar – Este é um dos pontos principais para captar e perceber a hiper-realidade que se nos apresenta diante de nós, como uma estrela de várias pontas, uma porta sempre aberta. Já Emily Dickinson se dizia, falando sobre a poesia "Habito a possibilidade, uma casa mais ampla do que a prosa". Pode-se dizer em versos, o que os não versos não podem dizer. Referindo-se à literatura em geral, Ernest Bloch falava dela como "Uma festa e um laboratório do possível". Ultrapassa a linguagem, transgride-a, o pensamento humano anula as suas barreiras. Jean Paul Sartre refere que o poeta está fora da linguagem. Luis Miguel Nava acrescenta que todo e qualquer poema é uma cosmificação, um lidar com o cosmos todo, no acto de escrever: entenda-se aqui universo interno e externo, ambos se tocam no processo de escrita. Se é verdade que qualquer texto literário está dependente do tempo e espaço, também é verdade que um texto dá sempre um salto e ultrapassa ambos. Nessa intemporalidade da escrita que é ao mesmo tempo uma universalização toda a história se adianta, se articula com passado e com futuro. “Escrevo tal como nado, porque o meu corpo assim o exige", dizia Camus no seu diário. Não é somente a consciência, outra forma de dizer alma humana, que pede o acto de escrever, é todo o corpo que pede, físico, palpável, a precisar de calor, é todo ele que necessita, e necessitar é sempre uma forma de desequilíbrio que procura o equilíbrio. Na escrita encontra-se esse equilíbrio que o corpo pede. Acrescentam-se pontas à estrela hiper-real, ela engrossa a vida, a literatura, pulsa no sangue, adianta-se. Todo e qualquer texto é sempre um começo e um fim ao mesmo tempo. O processo de escrita de um homem é o processo de escrita de toda a humanidade, de todas as suas vivências.
A literatura é sempre um colocar em abismo, uma luta perene contra a própria perenidade, um doce sopro que inflama de vida e sustem a civilização. O seu tempo e espaço é múltiplo, toca todas as matizes da condição humana, permite a sua compreensão pela fuga. Todo o acto de Criação, injecta de vida nova a linguagem. Como refere Leonardo Da Vinci: "A arte nunca está acabada, apenas abandonada": E é nesse abandono duns, que outros continuarão, em novelo eterno, aumentado o desequilibro, tornando o equilíbrio possível; nesse sentido a literatura será sempre um desequilíbrio. Como nos diz Pessoa: “A civilização é a tendência para a morte pelo desequilíbrio” – A literatura é esse desequilíbrio, mas ao mesmo tempo a salvação, o motor da união.


Nuno Brito

Minha Carne é de Carnaval - Marta Emília

segunda-feira, 5 de setembro de 2011

Maria Sousa

para os lugares que me faltam no interior do sono
tenho metáforas
ao falar do sabor que o vento deixa nos lábios
quando a voz tropeça nas sílabas
eu serei sempre a que abre as palavras na garganta


Maria Sousa, in:"A Sul de Nenhum Norte" número 3.
A revista pode ser descarregada aqui

Diogo Vaz Pinto




Nervo

Mario Santiago Papasquiero



COITO PAUTADO

Caldeira de diabos elétricos / minha pele à caça de teus fornos
Entra a noite em minhas pulsações
a febre levanta pirâmides de agulhas capazes de aflorar montanhas em minha ressaca
Teu corpo é meu solaço : meu sótão negro / minha Rosa Mayor & meu pandeiro
o canil de céu & cadências que me tornam 1 bruto parvo açoitador de camas
& leito de Grijalvas sexo na selva
& nave florida & rinoceronte com arpão de prata
Na rua ou em quartinhos
Enterrado na areia ou em teus beijos
Astros de esperma : martelos vivos cuspo empurro lanço ao rosto
à rua ou lábio minguante em que gemes
Nem 1 dedo perderei / nem 1 mão de meus naipes

Teu sereno : teus terremotos são minha hóstia / são minha droga
o peixe de sangue que se derrama com sua dança em meus oceanos
Desde estas alvuras já não sei
se ferrei tua sela ou teus cascos
A cama / que herdaste de tuas tias ainda me tenta
A Maga de Oliveira & de Cortázar encontro embaixo do grifo gotejante de teus uivos brancos
Caldeira enfornada na lira de sátiros suados
Paisagem que em seu olho / elege os pincéis & o material em que há de banhar-se o Action Painting
Caldeira de diabos elétricos
tua pele contra minha pele faz milagres



O MILAGRE EXIGE

Que via imaginarei
para seguir flutuando
& atravessar a selva sempre crescente do grosseiro rio
El milagro exige
De meus ossos flor
& de minha mente frutos
Neste crepúsculo preciso
em que a nuca do sol
vai de focinho
O ouro sepulta à cinza
a praga ao mar
a magia a toda pressa





ROSTO QUEIMADO


Para Akira Kurosawa

Introduzi minha vida
na vulva radiante da estupefação
/ minha droga é respirar este ar quente /
Traduzir à lua na minha pele
: irmanar minhas feridas com sua seiva crescente :
À margem do fulgor do trem
Meu sonho é 1 trajeto coital derramado
/ Minha escritura: minha cama /
Minha mulher: a Paixão
Entre espinhos & flamas
Me desperta o milagre
de beber meu arrebol
pois do trevo se trata

Da veia maciça do ornitorrinco cantor
Do espelho pintado de sangue
Da dança arquejante
De viver no instante
/ O chaquira do morto é revendido pelo adeus /
A vila mais miserável é entrada do sol
Porque trago arco-íris
Porque cago relâmpagos
Quiçá voem meus olhos
Enlaçados no vento
A este cristal revivido / que rompe seu cárcere
: Aura gotejando calor :





FLASHES DE VIDA LASER

Me esvazio totalmente
No basculante das palavras
Beijo o véu da destruição
Arco-íris negro das têmporas
Estou & não estou
Ejaculando / como sempre / luz
O pó é também
Espírito & folhagem de meu corpo
A agulha fosca do viver
Rompe a cratera pueril de minhas ânsias
Supões apenas
Desenhas o ardor de tua silhueta
À hora suprema do fervor
Sublinhando a ponte em ponta de teu transe
A hipnose-caldo fervente
Que antecede o harakiri

São Suicida do Curral
Enteado que trafega dinamite
A explosão é tua mulher
Possui-a estalando
O revólver do sentir
É tua própria costela
Recife de arrabaldes
Arremétrica suada
Como nuvem de relâmpagos dementes
Incendiando a sujeira
Aninhada em teus sonhos de cristal




HOUDINI’S SONG


I

Vivo meu desaparecimento
À hora dos relógios brandos
Golpeado pelas contrações-sopro de larvas desta espécie-fim de festa
Aprisionado inclusive no pote de grilhões dos eus

II

O bosque de vidro corre até o rio
Multidões de videntes bebem merlo
Montanhas vermelhas carregam ao dia
Em pleno você / absorto em nos
vou-me / cavando
não ao inverso
não fazendo muuus

III

O já amado ainda unge luz
As pombas não merendam com o Cristo do perdão
Que mais dizer / fendida a vela
Fulge minha fuga
espelho : o céu
Me desatou
Rompo fronteiras
Não sou aposta
Odeio meu juiz



ENQUANTO BEBO DESTE MEU ODRE DE IMPULSOS OURIVES


Madrugada empinada / de pombas & pedras
os sufocos da lua entre surras alcoólicas
Cristalino aceso
lascívia de jumento
tua silhueta de incêndio selou minha vida
Sou carvão em tua saia
cachorro curtido no teu matadouro
Cai o silêncio
os vaga-lumes dançam
1 espelho de sangue me crava as veias
o porrete do sol ronca
o precipício do sonho cospe ondas de ecos
exagerando sua febre mortal
Madrugada : que ventos
nem você nem eu nascemos verossímeis
Somos vagabundos/ basculantes / aguaceiros lavrados

Olha agora : te beijo
Amanhã fujo
Que pisemos 1 cravo & 1 relâmpago uníssono
me ilumina / me banha
ilumina meu canto

A criação é /
& tanto / 1 estrangeirismo

o rumor que a Catástrofe
arrasta em seu saco de dormir
Nos tobogãs do lago
na fuga –sem alento–
da erva
trepando na fervente estrada
boca a boca
céu a céu
lado a lado
A Criação
que mãos não se auxilia
que luxúrias tortas
que anjos
com os arames retorcidos

Em Miguel Anjo & em Leonardo repousa
enquanto regressa a seus olhos a navalha
o pólen que diremos / de escalpelo
o basculante que a tudo trastorna
o ronco do sonho
a sodomia que não deixa de estar recém-nascida
Tudo o que a cratera mande
A criação –lavrada em neve–
em plumas de cisne / embaixo de barcas
& chicotes de vinho que voam



PRISIONEIRO DO SONHO

Para Óscar Málaga

Acendo a cratera do meu destino (aurora ardente)
minha mente se detém em 1 piso que borbulha
a voz do labirinto se desboca
/ de lâmina a lâmina /
sem conseguir beijar o nó de cristal que me aprisiona
Hoje é 1 pedra que não canta & 1onda que resvala
Se desbaratam os truques de meu alforje
minha sanguínea segurança de kamikaze digno
O amor me conduziu à carniça
A chuva está quebrando pedras no meu basculante
Entre minha unha & minha carne me evaporo
Aurora ardente sem ventura





CANETA DE ABUTRE INTENSIDADE

Esta flor interna chamada bebedouro
homúnculo arenoso
manto ébrio que insemina seus pelos de firmeza
no terreno baldio em que se morde o esqueleto
Veja sua língua de sirene
banhando a cintura resplandecente que torce o labirinto
Não é 1 talho de cristal o bico corvo de seu vento
Não há relógios sintonizados em seu latido-cool / florescimento de enxames /
As filhas desta filha já não se chamam filhas
giram suas fibras assadas na febre
Fora de sua casa a encontra vestida
brincando de injetar insumos a seu botão
Fogueira de 1 suor excepcional / que reúne em torno de si os absurdos mais insensatos

Albert Dhürer a intuiu sem prová-la
Os tempos áureos a fizeram perdida
Nos graneleiros da angústia brilhavam os pedaços de sua ferida
mas não todas suas canetas / que são de 1 prenhez violenta & contagiosa
semelhantes ao delírio de 1 águia obsessiva por descobrir seus ninhos pelo chiado
murmúrio de 1 ar pilotado pelas chamas do capricho
pétala que pia apenas contorna seus botões a cinza
: esta fogueira-mulher enforcada na densa mistura de apertadas chamas :



MARIO SANTIAGO PAPASQUIARO

Tradução de Beatriz Bajo, In Revista Osíris - Revista electrónica de literatura e arte. Ano I, edição I.

domingo, 4 de setembro de 2011

Maria Képhri

Só o supremo tende a decrescer,
o hábito comum pertence à sobrevivência
os hábitos da metafísica são hábitos de comer à mesa,
e há um que pondera de maneira menor a este poder,
o que não quer dizer que decresça
mas sim que se torna desconsiderado.
O hábito de comer à mesa sempre foi um acto da metafísica,
mas haja pensamento inteligente, ele pertence aos jovens.
Num imaginário supremo também se diz paralela a inteligência
e então que a inteligência também se torna metafísica,
de acordo com o ser universal.
E há um que pondera viver como o ser comum...
Somos todos jovens floridos, vamos cantar as janeiras,
o hábito que nos veste também ignora o supremo e o poder,
somos jovens de modos, de modas, maneiras
uma maneira de entender a metafísica...
Uma maneira de entender: é que tudo pertence ao todo,
uma maneira de entender é que a morte é resolúvel
e que então a morte é um hábito também
uma pequena bibliografia sobre dizer-se da morte uma jarra flores em cima da mesa
uma pequena bibliografia sobre uma evidência
E então estudamos: acto comum, os hábitos filosóficos
aquilo que a metafísica ensinar na educação
e aquilo que vamos perceber do objecto que nos diz respeito.
Vamos perceber de qualquer modo, floridos no dia dos namorados,
de máximas filosóficas, e sem a nossa memória.
Ele pondera se o dia será muito curto e tem que retocar um objecto decorativo,
retocar a metafísica: o almoço, o jantar,
retocar qualquer hábito que pertença à sua mesa.
Só o supremo tende a decrescer, mas só a metafísica consegue ser menor.
E o supremo decresce? Houve um que tocou num balão,
ele quase caía a decrescer. A noção de todo o espaço não é do supremo,
que dizem deste meu à vontade? Olhamos e temos olhos para
retocar o espaço em volta. Tocamos e temos a nossa própria evidência.
É esta a nossa metafísica.
E o que é esta impossibilidade de saber?
O ser eterno às vezes pergunta coisas estúpidas.
O ser eterno pergunta se os mares inundam as casas dos possíveis mortos.
E qual é esta certeza, esta impossibilidade de saber?
Esta certeza de perguntar?

No ramo das perguntas a lógica diz que vai de A para B, de A para C, e de B para C.
A impossibilidade de saber é categórica. Não existe impossibilidade de saber.
A impossibilidade de saber é categórica. Não existe impossibilidade de saber.
E o que pondera, e o que é jovem, e o que levita
toda esta linha de vida na história distribuída.
os homens que são pobres fizeram-se Deus nas boîtes
restou um fumo primaveril que lhes tornitruava a catequese da miséria
esses homens vivem o inexplorável e ainda pecam
nos becos sem saída e nas mãos húmidas de tigreza
procuro um fio condutor de toda a minha pobreza
encontro dimensões de conhecimento muito apoupadas nos pequenos
povoamentos dos territórios hinos
são pequenas aldeias com a dimensão provocatória do seu modo de saber
semelhante à sua mediana
são pequenos dados sem razão aparente para este condenamento
se quis dinheiro não o tive, fazê-lo com sentimento
arriscar a sensação celeste de ultrapassar todo o desvio social
para cair de cabeça no reino de Jerusalém,
é quase perder a vista
as moedas que tenho guardo-as para nicotina, não como pão do dia
nem tenho almoços grátis
perder-se-ia a vista no seio de metalizados com a correria
da dependência duma África
os homens que são pobres fazem-se Deus pelos caminhos
os caminhos desabrigam-se, formam corações sepultados
e pedras de areia morta. Não sou pobre
sou um coração de areia morta a rezar pelos peixes sem olhar.
Se fosse pobre não teria sabido que
a areia me sobe à boca como se já estivesse na foz
e que morro todo o sentimento quase a perder de vista.
os homens que são pobres fizeram-se deuses a perder de vista
apararam a areia dos caminhos e contiveram
uma tensão de conhecimento sem préstimos, que ia
caindo de cabeça quase quase sem préstimo nenhum
e a cabeça atirou-se
a cabeça por fim bateu nas paredes de areia morta
e morreu também como a areia farta de dimensões de conhecimento
que não lhe serviu de nada.
as mãos estão frias e deixaram de ser
acabei de me enformar
sou uma espécie última do descalabro
não me deito mais pra baixo porque não posso
acabou a minha depilação de energia no último átomo
o ego está meio caído
assim ao centro é como se fosse uma convergência de
carros em movimento perpétuo e arrombamentos
os diabos terrenos são terríveis terríficos
as crianças ainda brincam por desporto às palavras últimas
enquanto os jovens pedem sentidos de senso comum
estou deitada. em equilíbrio
o planeta dos seres-máquina é mais pacifista que o meu
mesmo a casa, o quarto
é mais pacificista o quarto que a sala e a sala está coesa em terrificismo
deito-me. em equilíbrio
a deita é fundamental para a veracidade da espécie contígua
o adormecimento, a mentira, a piedade.
deixei de ter mãos, não as sinto
são mãos de leis e de objectivas mentais que fotografam
a vida pessoal num pano quente
escolho cada dia um tema primordial
o ego é uma hierarquia, a democracia pede muito
que os senhores se fotografem nus no passeio familiar
tenho a vida pessoal metida num pano encharcado quente
vou ali às compras do poema quase vejo o Tom Waits homenageado
por cumplicidade de ataque iraquiano
o poema manifesta a asma que nós temos no ponto da não-sei-quê da fusão
que é uma fusão qualquer sobrenatural
estar vazio é assim - estar cheio de fusão
o poema quer sempre manifestar esse pequeno ponto que nos põe nus
(quer-me dizer que tanta fusão gera um sentido proibido?)
os poemas têm dessa e da do cérebro. O cérebro acaba
sempre por explodir para o centrifugamento do poema
(temos ciência a mais, não me diga?)
não consigo deixar de pensar que as mãos estão frias
ponho-me a falar do deserto
deixei as mãos num altar perto do pico do evereste ou isso
esqueci-me lá da tragédia do pico
o alpinista contou a odisseia e rememorei que o seu pai
era amigo dum amigo duma criancice com os nenucos
os nenucos tiveram uma tragédia na Odisseia de Homero

que era similar à ideia universal dos miúdos
conta-se que a Odisseia era um livro da historicidade da vida da grécia antiga
os miúdos já compõem histórias dessas e depois deitam-se
os diabos terrenos engomam para fora
ponho a falar-se o deserto em ruínas
a poesia é algo sobrenatural que se conta assim aos outros
mas só em sítios escondidos
não me admira que apareça alguém duma caverna e reinvente todo o seu sentido
iriam muito bem reclamar essa pouca vergonha de sentido proibido
não me canso de pensar no ego
se arranjar um sentido causa-efeito ninguém compreenderá
se a minha ciência ficar complexificada rebento o cérebro para gigantismo
de pré-eternidade do poema. como seria sofrer dessa
doença? uma complexidade que se alongaria a sentidos supra desenvolvidos
todos em comunhão com o furo no cérebro pequeno
que é o de um ser comum
os carros já convergiriam com mais velocidade para arrombar
de vez com o ego no poema – e que ciência última?
se fosse ali comprar um poema vendia imediamente por lisonja de inaptidão
não se vendem ou se compram poemas, é-se imediamente um inepto
ninguém compreenderia o meu sentido causa-efeito
os temas complexos são com falta de desenvolvimento
não sei como é que o poeta tem medida para tanto e ainda
vive acorrentado ao conhecimento dos aspiradores
ou melhor dizendo, a poesia não lhe veste a capa,
não basta construir um muro já se tem outro, o tema
não basta para desmembrar a pele da memória
e a vida não consiste em que a casa nos caia em cima. sou deste
pedaço de terra que come todos os dias
ontem estive perante uma explosão, há muito tempo
há muito tempo
que a minha vida é uma explosão
não sou telepata com os que rodeiam, não tive
possibilidade
que assistissem a esta autêntica explosão de conhecimento
que se tem vindo a dar. O poema acabaria assim –
um pedaço de terra, de todos os dias, tão necessariamente
quanto o mais que falta
o açúcar dos pulsos eclipsou-se
o tão bem visto néctar
de uma natureza furtável, visivelmente
«a criança em chamas»!
eu não
ao ver a criança as polpas dos dedos carcomem-se-me
o luto não me fica bem mas também
não
a diáspora, a fragilidade cristalidade
do indómito pavor
ao grito lancinantes dos templos sob a insurgência
dos vultos
das mãos aluviando um risco em vão
qualquer coisa que se toque para enfim
temermos a morada
a origem do relógio das alucinações
em torno de alguma ressonância dialéctica
um pretexto de
estar enfim dentro de algo que se afoga
em contracções épicas
máscara fronte negro
um bosque um ponto onde não
podemos desvendar
o pequeno enigma
às vezes de um céu
de uma eternidade
do piano surdo sob a luz dos movimentos

é impossível toldar um bosque
como uma cara sedada absurda na milesiminidade
do habitat
no fundo somos aquele cocker junto à palmeira
o rochedo-instante
a lorpa-vácuo
a consagração do ar em múltiplo com a ilusão
da instância
o ponto-pó
o odor-memória aquela sentença
querida-romântica que não passa disso: e do progresso
e de não sairmos do mesmo ponto que é o universo
ou o que quer que seja desde que haja
uma vontade irreal
e somos todos imensos
alguém diria
o problema é que depois as contas de nós para nós:
isto fará sentido?
alguma coisa inútil que enfim me rejuvenesça me domine me revolva me
ALICIE?
alguma casa à espera de outra casa
algum mar parado no irrespiro
de uma advertência ilha alba consonância
poupados ao egoísmo
poupados ao consumismo
poupados ao radicalismo
poupados ao grito silêncio «Indeterminado»
e a música, que surge atenta nos poros
é, será apenas
uma nuvem que vagueia, uma marca de pulso um horror
a rostos esses sós
uma longa vida seria um pássaro
as portadas abertas para partilhar as árvores
ao amigo que voava no avião de madeira
esse amigo viria tingir de verde a toalha do lugar
arrefeceria o crânio e deitava-se ao comprido
o pássaro voava também nas suas asas
e o amigo agarrava-o com força para que morresse
(não é uma situação de morte? um pássaro)
uma longa vida seria um pássaro apenas teu ou meu
onde depuséssemos o peito desse pássaro sob a liberdade das asas
e o pássaro vivia em pleno voo na nossa miragem
apenas nossa essa miragem
e quando tivéssemos a certeza do pássaro?
teríamos a certeza que o espaço-tempo nos pertenceria
e toda a vida para trás, e todo espaço estudado, e todos os livros lidos
assim que chegasse esse pássaro
(se é um pássaro que te faz confusão vai a correr atrás do pássaro!
se é um pássaro que está presente confia, olha
estremece com o pássaro, faz tudo o que quiseres do pássaro...)
o pássaro pendia dum alto esguio ramo de árvore
e, seráfico, arrastava a luminosidade dos raios solares consigo
nessa longa vida o pássaro continha o milagre de existir
coexistir apenas contigo ou comigo, e coexistia cheio de luz
por todos os lados.
se eu, num quadro, quisesse retratar o que isto significa
pousava o pássaro novamente sob as asas e fixava o pássaro a essa coexistência.
o amigo viria no seu avião de madeira visitar-me lentamente
(e o pássaro? dizia, viste o teu pássaro naquilo
que me queres fazer esquecer?)
o amigo iria povoar tudo de pássaros de todas as espécies
e iria encontrar toda a ciência das aves,
mais tarde dir-se-ia do amigo
o que uma longa vida poderia contar desta nossa coexistência
e aquilo que estudámos, como nos divertimos, e como
esse pássaro era uma milagrosa miragem apenas nossa.
e esse pássaro naquele momento de leveza e incidência
e esse pássaro que ficou pendendo num fino ramo
era um pássaro que significava apenas a liberdade de um instante
e, que nesse instante, eu e o amigo fomos felizes.

depois seguem as pessoas
depois é que a senhora se esvai
em algodão e aquecida para
formar buracos nestas ruas
depois segue o seu sonho
e fixo onde segue mais gente quer vendê-la
o sonho é um teclado opaco
é um objecto que nos falta
e que dizemos por escrito
o sonho tira objectos dos sítios
não há mais sonho por agora
não há proprietários nem quem sonhe
sonho como uma senhora
vou à procura de cada cova
para na cuja me sobrar o espaço de tempo onde o pensamento pára
e vou também vendida
os objectos que lhes faltam
falta-lhes até o sonho
e na escrita falta o sonho
e nas ruas são vendidas
depois segue mais gente
e segue toda a escrita também
na escrita este sonho acaba
neste poema acaba a minha recordação
se quisesse criar algo novo por onde teria o sonho, as ruas?
está tudo para venda, nem conseguimos o resto da riqueza
e então onde ficava o sonho?
nightmare housecleaner
turnos
e então onde ficava a escrita?
ficaria a escrita num momento
e esse imprescindível
os poetas não sabem criar intemporalidade, os poetas já não têm sonhos
os poetas vendem-se nas ruas
e a verdade tem um fim em toda a escrita
acabem com a verdade! ou então: acabem com a autoria!
não faz sentido o sonho e os objectos
não faz sentido nenhum a inovação
depois seguem e seguem
sem entendimento algum
e não têm qualquer sonho ou moral
para os próximos mestres
a senhora anda aquecida
dou-lhe algodão para que se vista
têm teoremas de objectos
têm teoremas de poemas
os poetas compram-nas e vendem
a escrita é uma saudade continuada
agora quero a minha recordação
quero um momento do futuro
uma preservação daquilo que é sagrado
e juntar-me às ruas todas
vindo dos cânticos do futuro
os sonhos inquebrantam-se, enquanto
vou sonhando em silêncio, com marcas de água
diz-se do paraíso que é um sítio de mordaças
onde só o silêncio atingiu o emprego
antes de lá chegarmos pensamos em jarras de flores
céu nublado, uma nuvem,
e só depois chegamos ao precipício precipício
da nuvem, da flor.
às vezes uma criança traveste-se de nuvem
às vezes temos a sensação de estarmos perto
do precipí
do precipício, a criança nuvem é o nosso sonho
não nos lembramos mais de morrer depois do paraíso.
tenho um sonho ou outro, mas um sonho no meio
da terra, não me recordo do suicídio.
águas e sal à espera de cair
vão caíndo gotas e sal
das águas e sal que não constituímos
das marés baixas sem rodarmos o mundo.
penso como um poeta tem tudo:
nasce, vive, pertence ao paraíso
se é que tem, de que poesia serão feitos
os substantivos, os adjectivos sem consagrarem
um enorme espaço, um objecto distante? uma palpabilidade
cujo o poema não consegue acarretar, para defini-la
com estrofes e versos que saem da riqueza da vida.


será que o poeta pode ter tudo? escreve prolongando
nasce, vive, pertence ao paraíso
se é que tem, de que poesia serão feitos
os substantivos, os adjectivos sem consagrarem
um enorme espaço, um objecto distante? uma palpabilidade
cujo o poema não consegue acarretar, para defini-la
com estrofes e versos que saem da riqueza da vida.
será que o poeta pode ter tudo? escreve prolongando
uma nota à vida, não encontra como Dante
o paraíso nos versos, escreve ao lado da máquina fotográfica.
sonhei conseguir pertencer a um mundo diferente
um mundo onde o meu eu se transformasse em algo inédito
que era eu não sendo eu, o sonho cultivado até à milésima parte da terra.
seriam muitos sonhos, contar-se-iam um a um
pelo glóbulos de luz entre as paredes, escavar-se-ia
uma terra funda até encontrar-se um novo eu,
e depois chegava o paraíso. o paraíso seria a vida descontruída,
descontruir, ponto a ponto, o já construído
depois de nada termos construído, ainda assim.
as tuas pernas deflagram o percurso, não consegues
chegar até ao precipício, se a terra afundar até
chegares até ti, refaz-se o sonho perdido
pelo glóbulos de luz entre as paredes, escavar-se-ia
uma terra funda até encontrar-se um novo eu,
e depois chegava o paraíso. o paraíso seria a vida descontruída,
descontruir, ponto a ponto, o já construído
depois de nada termos construído, ainda assim.
as tuas pernas deflagram o percurso, não consegues
chegar até ao precipício, se a terra afundar até
chegares até ti, refaz-se o sonho perdido
para além do paraíso.
imagino morrer no próprio paraíso
sem ter nunca magoado alguém. toda a gente
vive de pesos, só o sonho puro.
como será
morrer num paraíso paraíso?
nuvem, flor, e morrer-se da maravilha.


Maria Képhri: in "Cràse" número 0. 2009.

Gonçalo Castelo Branco

«o insustentável peso das maçãs

desperto sem outros olhos que não a pele. sinto as memórias por
um caroço que trago fundo em mim. o futuro tem a cor da minha
imaginação e toda ela está consagrada a uma espera de décadas
para afirmar a leveza do sabor. saboreio dando tempo ao tempo
para ter o tempo por dentro, a assistir e participar do insustentável
peso das maçãs. se te digo cor é para consagrares as aparências
com as essências e encontrares cada uma em cada mão. agora
abre os olhos: o que farias hoje se hoje fosse tudo o que tivesses
sem haver um amanhã? já sei. vou comer uma maçã e lembrar-
-me de um amigo que em tempos tive e que infimamente conheci.
faço o que ele faria, também, com prazer e calma de quem não diz
adeus mas até depois. nada me fará esquecer de sentir o apito do
barco, o cheiro do pão pela manhã, a frase dita com carinho aberta
a uma morte feliz. a maçã caiu. novas árvores virão.»

Gonçalo Castelo Branco: in "Cràse" número 0. 2009.

sábado, 3 de setembro de 2011

Tatiana Pequeno

leçon pour le mercredi saint

sabia muito sobre a mancha imensa
de uma pele que se borda
a pincel de lâminas:
é sobre ser visível demais.
Fala de cinzelar o leite
ou morar dentro da circunferência de uma corda
pendida da memória de júpiter
num fosso para as urtigas
embora
soubesse mais a respeito dos ápices sonoros
numa longa suíte de sinos
em que sempre parece tarde
para não te ver pelo espelho,
nata.
é sobre ser invisível demais.

Tatiana Pequeno; in "Revista Pequena Morte" nº 22.

http://pequenamorte.com/

Manaíra Aires


28 de Maio 00:41


As cortinas são de vento polido e ele já vai desperto dos ruídos mansos. Artifícios
condensados no que faz parte da transitoriedade de teus móbiles, a chuva
despenca pelo abrigo e os cômodos caem pela retina. O comodismo da espera
afundada no sofá, da esperança travada como o gosto adstringente de quem
espera, a áspera língua dos teus tumultos pela compressa. A febre presa nos
lençóis perturbados, o meu bado no teu dilema. De ti ficaram os poemas, a chuva e
as inundações.
A chuva está a invadir o telhado e as flores na esquina não se esquivam dos pingos
que doem na suavidade. Dorme a menina desalinhada, aquela linha etérea na
materialidade do toque escorregadio. Escorrega a chuva nos dedos da distância,
escorrega a minha esperança de olhar o teu desespero a criar mãos. Pela linha
ébria o desvario pegado no último suspiro sôfrego. Lágrima pelo frêmito da chuva
que cala na lacuna de um domingo tardio.
Um mês pelas mãos desaguando. Uma sombra para o relógio que não me pontua.
Pontuação curta defesa defesinha, eu sempre sei tudo. Mudo de gotas de sono de
interstício de sobreposição. Sobre o limite o vidrinho, um mês pela quebra irreal da
vitrine e dos clichês. Faltam os dias orgânicos de corpos inanimados, falta ânimo na
ausência, sobra latência no que concreto se quer teu dúctil.

Leslie Mcgrath

O pão

deixei-te um pão embrulhado numa toalha de chá azul,
na tábua de cortar uma noz de doce manteiga e a tua faca favorita, a sua serrilha
gasta até suaves rendilhados. Quero que chegues a casa e a segures perto da bochecha
da maneira como deitaste a cabeça na minha barriga grávida há anos
para sentir o pontapé agitado do nosso filho. Põe a palma da tua mão no círculo húmido
que o pão deixa na tábua, lembrando-te da húmida noite de verão
em que levantaste os caracóis de cabelo do meu pescoço, inclinando a minha cara na direcção da lua.
Corta uma fatia mais grossa do que a que eu cortaria para ti e arrasta-a pela manteiga.
Saboreia o fermento, as groselhas, o coalho. Saboreia o sal das minhas mãos

Leslie Mcgrath: "A Sul de Nenhum Norte" número 3.

Jenna Cardinale

O marinheiro regressa

Quem consegue ler a sina
no fumo de cigarros espanhóis -
Forçado à porta
do bar, convidando
toda a gente a entrar -
Não ancoraste neste porto -
Não de barco, pelo menos.
A licença era necessária -
O dever de dançar,
amor, e toda esta linguagem.
Sortudo - Os bêbados estão ansiosos
por te dar as boas vindas a casa.

Jenna Cardinale, in "A Sul de nenhum norte", número 3.

A revista pode ser descarregada aqui:http://www.megaupload.com/?d=XSMYI3ZB

Joana Jacinto

Ordinal

I

Espera um segundo,
Se eu te disser
‘Espera um segundo’
Confiarão os teus dias naquilo que os olhos ouvem?
Espera um segundo.
Abre mão
das palmas dos olhos,
das palmas das mãos,
das palmas dos braços,
da palma do regaço,
das palmas dos pés
Nelas: todos os corações.

II

Espera um segundo,
Divide cada momento em seis.
Contempla o arco
o sol
Deixa cada momento morrer
na palma da tua mão.
As mulheres amam sempre.
Espera um segundo,
Estende a língua ao silêncio.
Sabe-o. Sobe
sobre o degrau último do tempo
Ouve-a, que paira.
As mulheres têm vários corações.
Espera um segundo,
Extrai os dias
da rocha
o tempo
Coloca-os sobre uma placa de madeira.
Destila o sal
do conta-momentos
momento-a-momento
a-tempadamente
fende:
Sagra dos dias a forma intacta.
As mulheres amam sempre.
Guarda o tempo,
momento-a-momento
recolhe-os para o verão.

III

Espera um segundo,
Des-conhece.
Des-arruma, des-compara, des-ordena
o cheio
chão das coisas.
Des-sê.
As mulheres têm vários corações.
Um no círculo dos olhos
chama-se relâmpago,
espelho.
Um no círculo das mãos
chama-se pele,
esquisso.
Um no círculo dos braços
chama-se tear,
edifício.
Um no círculo do regaço
chama-se pomo,
pérola.
Um no círculo dos pés
chama-se casa,
eternidade.
Espera um segundo,
Como se tivesses seis anos

e um sorriso de gengivas
o aguardasse debaixo da almofada pela manhã.


Joana Jacinto: "Cràse" número 1. 2010.

Catarina Nunes de Almeida

1.

Hoje faço questão de te deixar
uma nuvem branca sobre o olho esquerdo.
Sobre o olho esquerdo que é olho próprio
para cardíacos. Hoje mesmo
já que existe este mover de espumas
em tudo o que é cave no meu seio
na procissão que sai do adro
do cinema. Hoje mesmo
já que tenho o teu cabelo tombado
no meu rosto resolvendo-me
os caminhos. Cabelo igual
ao cabelo dos astros
do cinema.

2.

É parecido com os comboios
este Outono este corpo com vista.
Estamos sempre tão sós quando tomamos
a estação aos pombos aos pinheiros bravos.
Os dois tão sós aos encontrões
picando bilhetes com caruma
com carícias obrigando as gentes a esta
multidão de dois. Sempre à espera
sempre à espera que na manhã seguinte
o maquinista não se levante da cama
sempre à espera que a medicina nos conceda
mais um grande passo para a cegueira –
que nunca cure a nuvem branca que hoje te deixo
sobre o olho esquerdo.

3.

Colhe de um corpo
o carvão verde
a sua música cereal moída moída.
Abre um corpo na partitura canta-o
enquanto se parte enquanto ficam
anos por contar enquanto ficam
anjos nas pálpebras
inconfessáveis.
Como se a manhã falhasse sempre.
Como se escolhesses o comboio que pára
em todas as estações
e valesse a pena gastar outra infância
para não chegar.


Catarina Nunes de Almeida; in Revista "Cràse" número 1. 2010.

Miguel-Manso

Em Évora, um terraço


quando o nível das águas subir

(não se sabe ainda quantos metros)

e se apagarem certos lugares: a sombra

do limoeiro da infância


a praia onde todo o Verão cabia


e terminar submerso tudo o que foi raso e sacro

então que pelo menos permaneça intacto

aquele terraço em Évora


Miguel Manso - retirado de:
http://asfolhasardem.wordpress.com/

Sara F. Costa

Contemplação


sento-me na margem da tua infância
e recupero o gosto pelo esquecimento.
as minhas mãos traçam o momento
em que o teu corpo aberto colide com o mar.
imagino o oceano em que te deitas
e a forma como
a tua boca de areia se alarga
até à Praia da Vieira.
imagino os rascunhos de memória
que as horas vão largando
ao longo do caminho.
sinto-te um prolongamento do meu pensamento,
pensamento de água
volátil como a noite que te abriga,
fragmentário como o cheiro do teu nome de flor.

a luz apagou todos os vestígios da terra que nos escorre dos olhos,
deixou-nos entregues à substância húmida do abandono
aos caminhos modernos das várias formas de embriaguez letal.
embriaguez no centro de todas as coisas visíveis,
queimadas ao longo dos extensos pensamentos matinais.

escrever revela-se tão volátil como esfaquear-te,
se é que me entendes.

vivemos na mesma esfera de fogo que acompanha o balanço dos
[enforcados.
o gelo aproxima-se da boca
enquanto despertamos de todo o cansaço
e contemplamos as insónias enferrujadas
por dentro das imagens.
esquecemo-nos de vigiar a natureza quando a realidade tem problemas
ao nível do hardware.

observa, o ar gera filhos nos poros do tempo magro,
a alienação cria escamas firmes pela pele.

por dentro de todas as palavras abstractas
encontramos água
e o peito da terra respira um medo fragmentado.
os gestos nervosos das ruas anestesiam-nos diariamente.

Sara F. Costa: in "Criatura número 1" - Fevereiro 2008.

Ana Salomé

Ode Rimbaud


eu sou absolutamente moderna, Rimbaud.
sei que nunca pensaste que uma rapariga de Portugal
se tornasse absolutamente moderna.
o caso é que nunca deitei o amor pela janela
mas a janela deitou-se pelo amor dentro.
não toco piano, não falo francês, nem faço fru-fru.
sou absolutamente moderna, Rimbaud.
tenho telemóvel, tenho blog, tenho carro
e até uma paixão que já não é platónica
agora para se ser absolutamente moderno
diz-se virtual, Rimbaud.
perdoa-me
dou-te a minha perna
um prato com bolinhos de canela
para te lembrares do tempo dela.
perdoa-me o sarcasmo, Rimbaud
o fatalismo azedo de rapariga absolutamente moderna
constructo humano, já não ser.
perdoa as minhas pernas a engordar de noite para noite
o fumo da chaminé comum do prédio
a minha imensa falta de árvores
a minha necessidade que devora um poema para o deitar fora.
perdoa-me não ter entendido uma única coisa que disseste
mesmo na tradução do Cesariny que é livre e bela
como uma rosa francesa desgrenhada em solo português.
perdoa-me escrever telegraficamente
ter deixado de respirar para todo o sempre
e continuar a pintar os lábios de vermelho
como se isso fosse possível num deserto sem beijos.
perdoa-me não ter consigo manter a tua palavra
perdoa-me ter falhado e ser erro.
p.s. - se quiseres regressar a terra
como o Cristo da literatura do não
tomas café comigo?


Ana Salomé: "Odes" - Canto Escuro 2008.

Ana Madureira




Ana Madureira: "Noveloteca".

Luís Filipe Parrado

Teoria da Narrativa Familiar


Naquele tempo o meu pai trabalhava

por turnos

como herói socialista

no sector siderúrgico

e dormia com a minhamãe.

A minha mãe esfregava

a sarja encardida:

a água ficava da cor da ferrugem.

Havia, por perto, um cão

esgalgado,

sempre a rondar.

Depois a minha irmã nasceu

e eu fui obrigado

a rever a minha mitologia privada do caos.

Entre uma coisa e outra

aprendia mentir.

E isso, não sei se sabem, mudou tudo.


Luís Filipe Parrado, criatura n.º 3, p. 119, Abril de 2009.

José Ferreira

A chegada dos pescadores

o levantar tão descalço dos pés
na janela sobre as águas do mediterrâneo;
um mar de terras, de continentes, de algumas ilhas -

a madeira embebida liberta olhos de tinta
e guarda a memória das redes nos braços maduros
no olhar escuro das camisas largas, nas calças de gola alta
junto à cabeça dos pés, perto dos dedos de sal -

Júlia observa calma essas fadigas longas, esses rostos gastos
essas mãos grossas e morenas que se agarram ao cais.
Júlia observa calma o prateado dos peixes distraídos
inalando à distância um odor de escamas
característico e reflectido pelos raios de sol-

enquanto no fogão, o vapor de uma sopa grande
e na mesa tosca, as malgas de esmalte quebrado
os copos de vinho e os nacos de uma broa
aos bocados -

o António Maria e o Julinho estão de volta
está na hora da fome, a hora do descanso
a hora igual de todos os dias da semana
salvo o domingo
quando vestem um fato de riscas coçado
sapatos largos como barcos
e chapéus de abas negras até à entrada da igreja
antes da água benta -

a Júlia tem marcas nos cotovelos de tantas horas paradas
e tremem-lhe sempre os seios enquanto não chegam a casa -

ao domingo veste um vestido de chita e pinta os lábios
e quando chega a noite António toca-lhe devagarinho
e ao longe as estrelas -

José Ferreira 26 Agosto 2011

Carlos Vinagre

hortênsia


ante os peixes
um oceano de algas

a varanda transplanta o cosmos
na vaporização

viver o antes pelo ziguezague
nos maxilares do sonho
a vigília

o caldeirão mágico

há também a libélula e o fosso
e os feixes lilases na boca
e o caminho

-enforca-se o tempo -

e a antecâmara
e a noite inibitória das escamas
e o cobre da alma?

ante-a-noite o louva-a-deus
e o granizo e a virgindade do mundo
e o púbere campo da amnésia

- olha-se o fígado-

o vislumbre das sereias
a roda nupcial dos precipícios
os leilões de carne pela superfície do ininterrupto
bolor do sangue

- cai uma tempestade pelo nenhures -

a boneca invisível goteja a boca
e estica a língua ante o crepúsculo das mãos
e o abrir da água pelo esperma

não esperemos o feedback das cidades
basta a omofagia da ranhura
e um pouco de infância pelas colinas

fechemos os olhos e aguardemos o interruptor da luz

- as algas da tribo

sexta-feira, 2 de setembro de 2011

Ana Luísa Amaral

Fala Camões mais uma vez

Neste leito te tive
e me tiveste,
uma noite de verão
em que cantavam
os pássaros, a água,
as coisas todas,

mesmo que não houvera
disto nada
e tudo isto fosse só
de dentro

Mas pouco importa isso,
minha amada,
se o pensamento
engenha o que se passa

Neste leito te tive
e desejara
que essa noite de verão
aqui voltasse,
ou que nada de tanto
acontecera

Que os pássaros, a água,
as coisas todas
tivessem sido isso
igual a isto:

agua real,
pássaros de verdade,
e nunca tu aqui,

nem eu,
um dia

Alexandre O'neill

Rir, Roer

E se fôssemos rir,
Rir de tudo, tanto,
Que à força de rir
Nos tornássemos pranto,

Pranto colector
Do que em nós sobeja?
No riso, na dor,
Que o homem se veja.

Se veja disforme,
Se disforme for.
Um horror enorme?
Há outro maior...

E se não houver,
O horror é nosso.
Põe o dente a roer,
Leva o dente ao osso!

Daniel Jonas


É OUTONO E CHOVE NO MEU SONETO.

Pingam as rosas, partem os comboios,
Aquela rapariga de olhos lóios
Tapou as belas gemas em véu preto.
O relógio da torre executa as horas:
Brada dobre balada o sino algoz.
Quem sou não foi quem fui, um albatroz
Debica-me quem resto, crava esporas.
Não choram arcadas mas traves mestras,
Arqueia o pé direito do meu dorso;
Num saco levo o corpo, um pobre torso
Que dou aos pobres pombos das fenestras.
Um sopro do precórdio asfixiado
Afrouxa a corda e sai triste e cansado.

Daniel Jonas: in "Sonótono", Cotovia 2007.

Rui Lage

ABOIO

Tinha um teclado barato
no recinto dos olhos
onde um loop eterno tocava
êxitos de ouro que o passado,
crendo-se futuro,
sem talento e sem contrato buscara.

Sentada no muro cabisbaixo
a si mesma descia por
escada interior
e na subida me puxava
como água
do fundo de um poço.

Para sua corte me chamava
e eu ia, cabeça de gado
numa só noite apreçada
e vendida.


Rui Lage - Um Arraial Português, Ulisseia, 2011.

Miquel Martí i Pol

Dois Homens velhos

Dois homens velhos que sobem agora a escada
dizem que dantes o Inverno era mais longo.
Mais longos são os teus cabelos, e espessos
como as letras espessas do jornal
que diz que os B-52, ontem,
estabeleceram um novo recorde
de acção em combate na Indochina,
onde o céu é talvez azul
como o laço do chapéu do gondoleiro
que tenho guardado não sei em que armário,
ou como as fraldas que agora vejo, penduradas
na varanda mesmo em frente de casa,
varanda velha como os dois homens que, agora,
sobem a escada devagar.


Miquel Martí i Pol, in Antologia da novissima poesia catalã. Tradução de Manuel Seabra

Luísa Marinho



Um Blues Nem Sempre é Triste





O texto que se segue requer algumas observações prévias. Escrevi-o na segunda metade de 2005, tendo
como princípio a correspondência trocada entre dois portugueses que vivem afastados: um em Berlim
outro em Nova Orleães. Depois de ter escrito algumas cartas, comecei a ficar sem ideias, sem saber
como arranjar um final, se é que tinha de ter algum final... Depois acontece o inesperado. Em Nova
Orleães, o furacão Katrina provoca um terrível drama humano. Infelizmente, tive matéria para terminar
a correspondência... As três últimas cartas foram já escritas depois do furacão.



Nova Orleães, 5 de Julho de 2005


Uma vez disseste-me que gostavas de escrever canções de amor em noites quentes. Hoje
está um calor de inferno. Gostava de ser como tu e transformar o calor em música. Que
desperdício o inferno quando estás longe. Gostava de te ouvir dizer que aí também
transpiras e que sem ar condicionado te custa dormir. E que te sentas em frente a um
piano desafinado e fazes um blues. Comigo a música acontece quando ao regressar a
casa, ao fim da tarde, vejo o calor a levantar-se das pedras e todo o ar cheira a
queimado. São os fins de tarde em que, na minha cabeça, sou um negro sem correntes, e
corro pelos campos de algodão que pus a arder gritando “liberdade”, num tom ritmado
de esperança e dor. Sei que do outro lado está o rio, mas a minha liberdade não tem
objectivos. E desapareço nas chamas ao som dos cânticos da sanzala, que ouço ao
longe. Chego sempre a casa com uma sensação inútil de desejo. Inútil porque não o
transformo em som, porque as palavras – estas palavras – são poucas e desajeitadas para
dizê-lo. E porque penso que, se calhar, nem sequer vais ler esta carta.
Um abraço,
A


Berlim, 13 de Julho de 2005


Só existes tu nas noites de canções de amor que não chego a escrever. E, por
consequência só existo eu. Não importa se há quem se julgue mais privilegiado, mais
completo. Poder dizer-te que é bom ter música na ponta dos dedos sabe-me a um
milagre. Gosto das tuas palavras ajeitadas e reconcilio-me sempre com os teus abraços.
Dizes que gostavas que as notas te saíssem harmoniosamente. E eu respondo-te que
gostava de ser esse negro a correr pelos campos de algodão. Mas tenho de me resignar a
fazer a banda sonora, apenas. E o pior é que as canções de amor tardam. Aqui o calor
não é muito e as florestas estão demasiado longe para se deixarem ouvir morrer. Há
muito silêncio por estas paragens. Tanto que custa interromper. O meu piano continua
afinado, à espera de melhores dias. A liberdade é também paciência.
Um abraço,
B


Nova Orleães, 18 de Julho de 2005


Os teus abraços são também liberdade. Se me esperares com a porta da sanzala aberta,
juro que não desisto até te levar comigo para a beira do rio. Deixamos o coro e as suas
lamentações para trás. Já não me importaria com a música e a sua espiritualidade se
apenas precisarmos dos nossos braços entrelaçados para chegarmos a um princípio mais
fresco. Nunca pensei que a música na ponta dos dedos te acorrentasse. Mas agora que o
sei, peço-te desculpa pelo meu lamento. Podemos viver sem blues, se quiseres. Ao fim
ao cabo, é melhor deixar a tristeza nos campos de algodão.
Um abraço,
A


Berlim, 25 de Julho de 2005


Compreendo, pelas tuas palavras de compaixão, que ignoras que não existem destinos
forçados. Os abolicionistas não fizeram mais do que estar a meio do caminho dos
libertados. Vou continuar no meu quarto de derrota, onde não podes chegar, apenas
porque não sabes como ou porque não te soube eu mostrar o caminho. Mas não te
preocupes. Um blues nem sempre é triste. E é sempre possível quebrar a corrente do
medo. E perceber, finalmente, que não é a harmonia dos sons mas a sua intensidade que
nos comove.
Um abraço,
B



Nova Orleães, 30 de Julho de 2005



Não é a harmonia nem a intensidade dos sons que me comove, mas o seu desencontro.
Acreditas mesmo num destino antes de ti, eu não. Mas admito: a vontade de querer
forçar o destino é imprudente e megalómana. Nunca acreditei noutras entidades que não
o indivíduo. No meu mundo não existem pares, nem grupos, nem famílias ou
agregações. Então porquê a minha necessidade de partilha, de querer libertar-me
contigo? Esta cidade é estranha. Vivo o seu quotidiano de uma forma apaixonada, mas
não te consigo falar dele. Construo imagens de cenários possíveis e nestes, trabalho a
minha imaginação e o que me liga a ti. Os arrebatamentos surgem em estados de
espírito assim. Quando leio as tuas cartas é quase sempre de noite e já passei pelos bares
de sempre onde o embaraço da descontracção alheia me faz fugir. Começo a achar que a
distância propicia o controlo. Este será, talvez, uma arma de defesa. Ou de arremesso.
Como o amor.
Saudades,
A



Berlim, 5 de Agosto de 2005


Talvez os apátridas se procurem em todos os gestos quotidianos. Lembro-me que no
passado Abril, corri todas as floristas para comprar um cravo. Não encontrei. Não sei
como se diz cravo em alemão. Também procuraste um, no passado Abril?
Abraço,
B


Nova Orleães, 12 de Agosto de 2005


Hoje tropecei num mendigo negro que pedia sentado à porta de um café. Caí e praguejei
em português. Ele olhou para mim e ajudou-me a levantar. Tirei um dólar do bolso para
lhe dar, mas ele abanou a cabeça numa expressão de cansaço e virou costas. Senti-me
frágil e inútil como se tivesse deixado de compreender tudo, ou como se tivesse
começado a compreender tudo. Não sei de que lado estou, se tenho sorte ou azar, se
pertenço ao grupo dos privilegiados ou ao dos que nada têm. Por isso, estou à margem
de tudo, entre lucidez reveladora e a dúvida insolúvel. Entre o céu e o inferno, o melhor
sítio para se estar, como diz um blues antigo. Não estava assim em Abril passado,
quando pedi à minha vizinha do lado que me desse um dos cravos vermelhos que
cultiva no canteiro em frente a casa. Perguntou-me para que o queria e eu falei-lhe da
revolução. Disse-me que o seu país também precisava rápido de um Abril, o que me
comoveu. No dia seguinte, ao passar pela sua janela, vi que tinha posto um cravo numa
jarra e o exibia em cima da cómoda. Tem chovido muito por aqui. Já não sinto o cheiro
da madeira queimada.
Abraço,
A




Berlim, 30 de Agosto de 2005
Pergunto-me se ainda vives. Ainda vives?
Saudades,
B


Nova Orleães, 15 de Setembro de 2005
Queria escrever-te até esgotar a musicalidade das frases. Percorrer todos os sentidos de
palavras como “cravo”, “liberdade” ou “utopia”. Mas a água inundou o papel e a caneta.
As palavras já não são palavras, são desespero. Deixei de lhes sentir o sabor, de as
saber. Ainda vivo, não sei como… e no meu barco já não cabem mais crianças
naufragadas. Faço parte dos que nada têm, agora sei-o.
Abraço,
A


FIM

Luísa Marinho

Luna Miguel

LADRAS O MUERES

También he visto a los mejores cerebros de mi generación
destruidos por el emoticono.

He visto sus rostros inexpressivos.
He leído sus poemas fotocopiados.

No conozco su violencia
pero intuyo un nuevo aullido.
Un grito seco.
Un grito de amor.

Porque también he amado a los mejores cerebros de mi
generación:

los he besado e masticado,
los he deseado tanto.

Cerebros que vienen del cielo
cegados por una luz que no parecía suficiente
y que ahora quema la entraña
de mis antiguos versos.

Cerebros que he sido y cerebros que seré.
Drogas que he consumido. Medicinas.
Bocas que he rechazado y que ahora necesito.
Sesos de animal que mi madre cocinaba
antes de cambiar de ciudad
y dejar
las cucarachas del armario
en el olvido.

Cerebros recitando de memoria.
Cerebros escribiendo de memoria.
Ignorantes neuronas
vomitando de memoria.

He visto la generación a la que pertenezco y apenas la
soporto.


Luna Miguel, in "Poetry is not dead" Prémio de Poesia Hermanos Argensola 2010.

David Foster Wallace


Viking: Poema manuscrito

Golgona Anghel

Poeta na Praça da Alegria

Não sou infeliz. Não, não me quero matar.
Tenho até uma certa simpatia por esta vida
passada nos autocarros,
para cima e para baixo.
Gosto das minhas férias
em frente da televisão.
Adoro essas mulheres com ar banal
que entram em directo no canal.
Gosto desses homens com bigodes e pulseiras grossas.
Acredito nos milagres de Fátima
e no bacalhau com broa.
Gosto dessa gente toda.
Quero ser um deles.

Não, não guardo nenhum sentido escondido.
Estas palavras, aliás, podem ser encontradas
em todos os números da revista Caras.
A ordem às vezes muda.
Não quero que me façam nenhuma análise do poema.
Não, não escrevam teses, por favor.
Isto é apenas um croché
esquecido em cima do refrigerador.

Obrigado por terem vindo cá para me beijarem o anel.

Obrigado por procurarem a eternidade da raça.
Mas a poesia, mes chers, não salva, não brilha, só caça.


Golgona Anghel in "Vim porque me pagavam" Mariposa Azual, 2011

Rober Diaz


Gameto.

Tenderte,
sí,
desdoblarte,
como si fueras un mapa
al que solo acudo a buscar reflejos,
ecos de ubicaciones prefabricadas,
espejos caleginosos
donde perder el camino sea más fácil;

Supongo
que lo que quiero es extrañarte,
alejándome del punto vacío
por donde nuestras despedidas se cruzaron
como crucigramas
que encerraban miradas
y gestos mullidos,

Tuvimos que callarnos...?
Para decir:

Tal vez sea,
que te encuentre en el infierno,
olvidada de las lineas de mi mano pútrida,
descompuesta,
apestando a estiércol,
que ahí anhelará tocarte
esfumándose en un latido
como perro horrorizado,
como un guante ajeno,
corroído a la sombra
por el fuego semejante a una tumba,
meditando
que el futuro
es solo su desaparición,
en rastros
de sudores inahalados,
de pistolas no empuãnadas
y dejos acuosos
de lágrimas o
sáliva evaporada.


Pudimos decir:
No te veré más:
Mañana me saco los ojos,
con un abrelatas desepcionado
que esperaba
nenúfares de mi alma
y solo recibió limazas coprófagas
caracoles descabezados,
un par de testiculos emplazados
a producir más esperma
para callar cualquier ansia...
de penetrarte
y retenerte..

João Borges

JOÃO BORGES


Um Sorriso a Morrer Devagar


SEGUNDO ACTO


Sigo sempre o mesmo círculo
que me afasta.
As tuas palavras foram breves e intensas,
obrigaram-me a fixar o rosto,
expuseram-me à suavidade do olhar
derradeiro, como se a pele
derretesse sob o fogo.

Dias mais tarde,
demasiado longe,
estarás do outro lado
e se sorrires eu vou sentir
e lembrar-me de ti
enquanto a luz desfalece como sempre
sobre as fachadas das casas
e as árvores tristes, secas.

Âncora, 11.8.10


João Borges


António Pedro Ribeiro

CARTA À MINHA MÃE

Sabes, mãe,
eles deram cabo do Homem
sabes, mãe,
houve um tempo em que fui à escola
houve um tempo em que até trabalhei
mas agora cansei-me, mãe,
não posso mais ficar passivo
não posso mais assistir sentado
eles estão a dar cabo de mim

Sabes, mãe,
estas coisas vêm da infância
eu observava as coisas
era talvez o mais inteligente, mãe
mas não intervinha
contentava-me com o meu mundo
com os meus personagens
mas agora o teatro é outro
envolvi-me com o mundo
casei-me com o mundo
e eles estão a dar cabo
do nosso mundo, mãe
destroem a natureza
viram a natureza contra nós

Até podes votar neles, mãe
mas sabes, mãe, eu não sou como eles
eu preocupo-me com os meus filhos
e paro como as outras mães

Sabes, mãe, essa merda dos negócios
e do dinheiro
não me diz nada
gasto-o em dois tempos
quando o tenho
são papéis e pedaços de metal
que se trocam
nada mais
mãe, estou farto dos discursos deles
na televisão
é a mim que eles querem destruir
querem-me mole, fraco, deprimido
mas desta vez não vão conseguir.

Mãe,
eu sou o Homem.


António Pedro Ribeiro

Cecília Ferreira

Sou-me fatal. Visto Hedda, visto Hamlet
Vingo-me de ser quem sou todos os dias
E acabo sempre nua.
É isto o absoluto? Um viés oco de risos e palmas.
Um mísero momento pavloviano que morre a salivar tédio.
E saem todos em filinha, vestem sobretudos, trocam uns gostaste e uns encolheres de ombros,
Acendem um cigarro e levam dali dores de mãos.
do outro lado
dispo Hedda, dispo Hamlet
e aturo-me sem remédio e sem luzes.
Fatalmente.





Enquanto procurava no Google Maps o sentido da vida
improvisava:
“Não sei se algum dia alguém me viu
Costumo sorrir, cumprimentar e bater-me.
Bato-me muito.
E os anos passam, as brancas trepam pelas rugas
a sensação de sentido desorienta-se.
Sou invisível, uma extraviada.
Nenhum imperador me fez vénia ou musa
nunca inspirei uma canção.
Não sei ser.
Sei bater-me. E dói.”
Not found.
Escacou o computador na cabeça e foi dormir.




A mulher saiu a escorrer, nua e gigante,
da banheira de Botero e só parou
no sinal vermelho para peões.
- Olha a gorda!
- Monte de banha nojento!
A chacota abriu a porta ao estado de choque.
A gordura queria derreter de nervos e vergonha
Mas as lágrimas inchavam-lhe as bochechas.
Uns dias mais tarde, afogou a mulher longe dali o seu peso.
Quando interrogado pela polícia acerca do caso
Botero, serenamente, proclamou: “Não, eu não pinto pessoas gordas”.





Está uma cabeça a tentar partir o vidro da minha janela.
Tem um bico incomum.
Do lado de dentro tremo. Tento que me leia os lábios e peço-lhe que vá,
mas a resposta é gesto insensível do inferno – riso.
Já passou uma hora. O vidro está cada vez mais fino.
Talvez dentro de minutos eu morra
de bico fundente e riso agarrado aos dentes.
Ouço o estilhaço. Grito tolhida e sem timbre. Os meus pêlos paralisam de pé.
Se a cabeça souber ler vai perceber que estou com medo e partirei.


Cecília Ferreira



Luis Felício

cada homem é uma fome dentro
do sono a terra erguida

afeito ao som o nome é
o fuso do verão tecendo o calor
à medida que a fome sobe à garganta

o mel a asma dos teus dedos
peito adentro
desde o bosque


há o meu nome o teu e o mundo em redor
ou uma casa que diz como tudo é
um dos nome do mês de maio
e rodeadas de árvores as mãos
alumiando o que resta do sol
nas vidas de quem não é mais que um modo de nomear
o som audível através do gesto
que escuta sempre
o que soçobra dos estilhaços do vento
em torno das casas
há um minério profundo
o meu nome como se eu dissesse
o vinho aberto ao meio
dos joelhos bebemos sempre
o que vem depois de a chuva haver
plantando no fundo das cisternas
o que resta do nome das amêndoas

*
(de olissipo recordo)
recordo as tardes as tágides
declinadas ao longo da orla dos pomares

o mel que faziam os dias no teu rosto

enquanto nos ataúdes a raiz do sangue aguardava
que as noites crescessem verticais face
à extensão do teu nome
por entre as vigas do calor

(posso dizer que depois que)

conheci alguém no centro do mundo

(tenho sempre os mesmos sapatos;
os mesmos que pisaram paris, os mesmos
que pisaram a relva de Auchwitz


tentativa de poema concreto

homero era cego. tinha os
olhos brancos das fontes

dizia-se que com as suas mãos
movimentava as casas
e as paisagens de lugar

só de as olhar

homero via. as metáforas.

dizia-se que com tesouras
dentro da noite
semeava os olhos dentro da pedra
e escrevia depois o odor do estilhaço

dizia-se que homero
era cego
e que escrevia as palavras como
pálpebras sobre o lume. que

homero via sempre

o primeiro nascimento dos olhos
a partir de uma pedra de cal

homero é cego e vê.

a inércia como máximo movimento

e as metáforas todas estilhaçadas
numa parede branca

homero vê.

a projecção de um eco
diante de uma lâmina

a sucinta extinção da figura
arrasada pelo gesto de consumar
a sombra de uma sombra

homero é cego. vê.

as imagens desde dentro
da sua própria ausência

---------------------------

não há paisagem que seja
imóvel

o poema
como os incêndios
é um corpo sempre
em movimento


*
são fundos os rostos da memória,
enquanto
na faina do vento, os olhos amam
o cerco de uns braços em torno do peito
desde da raiz da melodia
até à rubra flor do rosto

sempre que alguém canta
nos ledos verdes campos,
a canção das searas em flor,
um alaúde estremece
na quente solidão das casas

e diz-se depois que
é um luto a mão que assina a carne melódica
na pauta do feno colhido por braços

e diz-se que
é doce a canção,
enquanto
um peito estremece numa véspera de amor

canta a voz:
é doce a viagem,
enquanto
o marinheiro decanta os astros
no cume do verso
à proa da vertigem

e cantam as mulheres em coro:
a canção é uma viagem,
e é o fado do sangue, ser sempre
a semente do rosto,
a força amante dos braços
que circunscrevem os pomares em flor

é fundo sempre um rosto amado
é rósea a mão da cor do fado,

da cor do destino de um verso:
ser de tudo sempre

o obscuro ritmo diverso

um ser de raízes à tangente da fala


*
alimento a mel os olhos
dos mortos

em lagos de vento
o pó devora as mãos

tenho a tua mão sobre o meu ombro

as águas de maio
pela cintura


talvez a minha língua tenha que voltar à origem
ao teu rosto talvez tenha que
que pôr as minhas mãos por dentro dos lugares
que tu usas como coração

talvez tenha que aprender de novo
a me desequilibrar só de respirar

Beatriz Hierro Lopes

Como fome

Fosse cinza, antes cinza, mas não. Nem cinza. Que não há cinza que chegue para cobrir de branco as ruas, as ruas que conheceste (ainda te lembras das ruas que conheceste?) levando vestido o lado avesso da cinza, que já não é o cinza branco em que cresceste, não, outro cinza de negro investido. E as ruas, as ruas que chamaste, como mulheres, e é já velha a memória, como braços pernas jardins de olhos amendoados, canteiros de ervas ruivas que eram ruivas ao sol, via-las ruivas com o rosto na relva de quando caias de bicicleta, e agora, agora, sem braços sem pernas os olhos perdendo a amêndoa figos secos engelhados negros como os canteiros que alguém deixou à fome. E há fome nesta rua. Nesta rua que, lembras-te?, já foi tua. As floristas sem flores, de portas fechadas e lá dentro, (espreita, espreita à janela) os vasos sem terra só cinza vestida de negro e aranhas de pernas estendidas no ar, viram-se de costas as aranhas e os insectos moscas varejas sem alimento, enchendo o fundo do vaso. Os plásticos de cores berrantes enrolados à volta dos cilindros de metal, soterrados pelo pó como os palhaços, sim, as caras pintadas dos palhaços, que agora, bem visto, que eram velhos no teu tempo, agora mortos, que é do teu tempo a morte dos palhaços que viste no circo dos teus cinco anos.
As portas fechadas. Todas as portas fechadas, a verde, a azul que tanto gostavas por ser um azul mais denso que o azul a que estavas habituada, a vermelha, a vermelha também, que na tua rua havia uma porta vermelha e tu pequena com medo da porta vermelha, porque não era humano aquele vermelho mais aberto que o sangue, vermelho medo de mal pisado aos pés daquele homem, que era santo, e de cujo nome não te lembras mas sabes, sim sabes, que dele havia estátua na igreja do teu colégio e que tinhas medo medo de o olhar porque o homem que pisava o vermelho mal tinha uns olhos estranhos que reflectiam o branco da lança. Olhos todos brancos, tu perguntando à tua mãe, Mãe é possível ter brancos os olhos?, e a tua mãe respondendo-te que não, que só os mortos tem brancos os olhos. E tu imaginando que o homem que matava o vermelho caixão aberto era um morto e que só por ser morto podia matar a morte vermelha aberta como a porta que na tua meninice estava sempre aberta (não não espreites) e agora fechada, com o vermelho desbotando-se num tom de castanho que te dá mais medo do que dava quando eras criança, e sem querer pensas que a morte naquele lugar é a morte mais morte do mundo porque tem a cor da terra seca em que as flores morrem.
E em que as floristas desaparecem. E sabes de cor o nome de cada uma. O tom da voz com que te dava os bons dias, sem voz, vestindo de negro cinza as montras de aranhas estendidas, pensas que tudo se encerra onde começou, que há um ponto na rua, que é a tua, em que tudo começa e acaba. Lá, depois dos olhos que eram amendoados e dos canteiros de cabelos ruivos, sobre o crânio da rua separado por grades, e por momentos vês a rua a rua que a tua história te deixou, viúva. Rua de negro cintando-lhe o ventre e a garganta que sempre as imaginaste assim, viúvas de vestido longo e gola comprida, sem pele a não ser a do rosto e das mãos. Quanto mais morte menos corpo, disse-te a tua mãe. Estás no fim da rua e ao olhares para o início vês toda a rua, vestido longo de luto, e acreditas como acreditavas ao olhares os olhos brancos daquele que pisava matava o vermelho aberto, que talvez o luto da tua rua tenha descido dos teus olhos. Que os levas brancos memória velha da rua cinza branca. Como o avesso do negro. Tudo o que te morreu. A ti. Que a levavas ao peito como a flor que roubavas aos canteiros quando te portavas mal e querias pedir desculpa a tua mãe, Desculpe mãezinha, olhe é para si.
No fim da rua olhando o início. Os canteiros sem flor, tu sem flor, vestindo um negro mais negro que o da rua, o tempo em que os palhaços, as floristas, os santos, te olham com o olhar branco, do fundo da sepultura que se abre na bainha do teu vestido. Tudo o que te cai, tu caindo, e para trás, lá bem atrás, a relva de quando caias de bicicleta, sem bicicleta só escuridão pouco corpo, de pé, olhando o chão como se levasses o rosto caído no chão sob o peso dos teus pés que já não são os pés doces algodão do teus doze anos. Frios, aranhas de pernas estendidas de costas olhando o rebordo do vaso, que sim, era branco, sempre branco, porcelana branca. Como dentes. Os dentes que te caíram de leite e que tos guardaram na caixa de pó de arroz da tua bisavó. E, por instantes, sentes falta dos teus dentes de leite pequenos e pedes, dentro de ti, como fome, Dê-me mãe dê-me de volta os meus dentes brancos de quando os palhaços eram vivos e havia flores nos canteiros.

Gonçalo M. Tavares

20.


Atravessa as águas também, excelente amigo Bloom,
quebra o mar em dois.
O mar é um mamífero,
o barco, o punhal do sacrifício.
Porque, como todos os animais,
o mar só é arrogante
até encontrar o seu dono.
Falamos do mar, mas talvez
seja a terra e o céu que exigem ser descritos.
Bloom, Bloom, Bloom.

Gonçalo M. Tavares: "Uma Viagem à Índia" Editorial Caminho, 2010

David Teles Pereira

No wonder we found ourselves rootless
Gregory Corso


Sou bisneto de um tal Ishmael Veilchenduf, judeu germânico-falante,
que em tempos negociou peles de animais exóticos
e bibelôs de cristal algures nas margens do Vístula,
privando ocasionalmente com a alta sociedade de Varsóvia.
Diz-se que deu à primeira filha o nome dos sonhos que ficaram por cumprir,
quebrando com isso uma linhagem milenar de princesas de sangue negro,
o que nunca foi verdadeiramente perdoado pelas mulheres da minha família,
habituadas a quase tudo desde que não envolvesse um pouco de decepção.
A minha bisavó, conhecida como Mary nos seus tempos de prostituta,
nunca voltou a observar-se ao espelho depois de casada,
talvez por medo aos demónios ou simplesmente a ver-se demasiado gorda.
O meu sangue andou por bordéis no norte da Europa e participou
activamente na compra e venda de carne tão branca que,
no passado, teria sido considerada aristocrática e enferma.
A minha irmã, de nome grego e impuro, escolheu ser vegetariana,
em forma de protesto para com esta ascendência judaica,
bárbara através das mãos, obcecada em sangrar
pequenos animais peludos até à última gota. Tem, tal como eu,
os olhos verdes e toda a espécie de amor que eles podem conter,
herdados de uma mulher que não cantava suficientemente bem
como para enganar a vodka e outras certezas num café perto da Syrenka.
O meu bisavô Ishmael apreciava várias espécies de miudezas de aves,
grelhadas ou fritas em azeite importado de Espanha
pela Sociedade Guzmán&Hijos com domicílio social em Barcelona.
Talvez por isso, eu tenho o cabelo desta cor que vem de dentro,
como o sangue que me escorre dos lábios em noites de violência.
Sou excelente como carnívoro, sustentado a músculos, tendões e,
com um pouco de sorte, corações de animais
que a minha raça já chegou a considerar como irmãos
nos tempos de C. e outros idólatras.
Um dia vesti um casaco de zibelina de Esther
e exagerei na pintura dos lábios com o ciclo de sangue da minha irmã mais nova,
detentora de bonecas associadas à decadência erótica dos nossos tempos.
Atravessei a cidade e toda ela me pareceu fantástica:
as mulheres de seios estavam cobertos pela sombra de Wiene,
os meus irmãos a fluir pelas ruas com o aguado sangue de Abraão
que transportam nas veias, alheios às péssimas condições climáticas
apresentadas pela tristeza nestes dias que correm...
De repente, um grito atravessou o céu e senti o seu cheiro agre.
Tomei-o por divino: eu caminhei lado a lado com Enoch.
Meus Senhores, foi isso que consegui em vez de me sentar
na cadeira do meu pai a escrever um poema
sobre aquilo que Pilatus disse aos judeus formalistas
no lugar em que os inimigos de César eram crucificados.

David Teles Pereira, in "Biografia" - Língua Morta:2010

quinta-feira, 1 de setembro de 2011

Jana Benova

Jana Beňová
Translated by Heather Trebatická
SEEING PEOPLE OFF
(Café Hyena)
(Extract)



KALISTO TANZI


Elza: Together we ate grapes and washed them down with pink wine. The next
day I discovered a damp grape stalk in my pocket. It looked like an upside-down
tree.
Kalisto Tanzi disappeared from the town, which was gripped by a heat wave. The
heat radiating from the houses and streets burned people's faces and the scorching
town seared its mark on their foreheads.
I stopped in front of the theatre's display case so I could read Kalisto's name on
the posters and reassure myself that he actually did exist. I derive pleasure from
uttering the name that had tormented him throughout childhood and puberty and
only really stopped annoying him after my arrival. I slowly walk to the other end of
the town, the muscles in my legs tingling slightly in the hot air. It is noon. Drops of
perspiration are the only thing really moving on this planet. They run down to the
bridge of my nose and spurt out again from under my hair.
I'm going to buy poison.
Yesterday Ian saw a rat in the lavatory.
The rat-catcher has a wine cellar under his shop. We go underground to escape
the unbearable heat and sip wine. He tells me how intelligent rats are.
"They have a taster, who is first to try the food. If he dies, the others won't even
touch the bait. That's why we use second generation baits. The rat begins to die
only four days after consuming the poison. It dies as a result of internal bleeding.
Even Seneca claimed that such a death is painless. The rest of the rats get the
impression that their comrade has died a natural death. But even so - if several of
them die in a short time, they decide the locality is unfavourable on account of the
high mortality rate and they move elsewhere. Some people and even whole nations
completely lack this ability to assess a situation."
A perfect, repulsive world. I smile over red Tramin. The rat-catcher speaks very
fast. His face is in constant motion. As if he had too many muscles in it. As if
a pack of rodents were running around under his skin. From one ear to the other.
From his chin to his forehead and back. I can feel his restless legs jigging under
the table and his whole trunk sways in a dance.
The sight of this makes me feel dizzy. My head spins like when watching a film
that flashes too quickly from one scene to the next. The rat-catcher bends forward
and gets tangled in my hair.
"You're such a pretty little mouse," he smiles. I smile back. I sense I stink of
loneliness.
He sees me out and on the way he gives me a plastic bag full of rat poison.
Instead of flowers. I clutch it proudly. Perhaps it will always be like this, I think
to myself. If men want to court me, instead of flowers, they will give me a bag of
second generation rat bait.
After emerging from the cool cellar, hot air and a world without Kalisto Tanzi
hits me in the face.



I first saw Kalisto at a private preview. A lot was drunk there and a few new
couples were formed in the course of the evening. As Ian says - where there are
men, women and alcohol… - and he thus gives the basic coordinates for the
localisation of sex.
I looked into his blue eyes and for the first time I longed for a being with coloured
eyes. Ian's are almost black. Colours have always been a decisive factor for me.
Their combination in Kalisto's face attracted me. We sat together and talked until
morning. As always in the beginning: you can once more give an account of your
life and everything is interesting. You talk, slowly revolving around yourself - the
whole room dances with you - fine sparkling powder settles in your hair.
In Kalisto Tanzi's presence my account seemed more exciting. My own life swam
before our eyes like a glass mountain. With every word I created it anew. Recreated.
I recreated in Kalisto Tanzi's presence. No doubt I could write a book about it. It
would be a musical: Ah, little fairy, if you only knew all the things I've been through…
But it's lunchtime now. I am sitting in a coffee bar. Dressed in brown: an old
woman. I am sitting opposite Ian. An old couple. The silence between us is broken
only by the newspaper headlines. From time to time Ian reads one out to me over
the table. Then he reads on. The newspaper is a drawbridge. He occasionally lets it
down and looks at my face. Our eyes do not meet. The wine tastes like prunes and
chocolate. The coca cola inscription on the tablecloth begins to rise imperceptibly
to meet my face. I hold it down with a plate. I like things to stay in their place.
Back home I sit at the table and write a letter to Kalisto. Ian stands behind me
- Ah, do you have to write such a long letter, you poor thing? Wouldn't an SMS do?
For example: Where are you?



Kalisto Tanzi doesn't have a mobile or an e-mail address. He considers this
form of communication threatening. (The old English term blackmail referred to
extorting unjustified taxes. Non-existent debts, promises not given.)
There did not exist a simple way of interfering in his life, climbing through the
window of a monitor or display, appearing in person before his very eyes.
Elza could not rely on electronic seduction. Although she had a talent for it -
for chatting and sweet nothings. She had the gift of the gab.
But the new possibilities also brought her stronger competition. It was so easy
to get involved with someone, to contact them. Everything played in favour of
seduction. In particular the time saved by rapid communication.
Nowadays no one had to patrol a dark street at night, travel in a coach, a car,
a storm. Repair a wheel, change the water boiling in a radiator, walk around homes
and coffee bars or helplessly roam streets where there was a hope of meeting the
loved one. Map the possibility of their being there. Follow, track, hide, stay in the
same place for year after year or travel endlessly.
Emails and quick SMS messages were windows and mirrors rapidly multiplying
in the world. Through them it was possible to climb into a room, onto a roof, into
a lavatory, plunge under water and fly into the air. Hang up your own alluring
picture - install yourself - anywhere.



Elza: In the air, in someone's path. Expose you to my picture.


Elza's morning begins with writing. She puts on some music and for half an
hour eagerly gets on with her book. While working she often gets up from her
chair damp with perspiration, because when writing she drinks litres of tea and
has the music on too loud and she writes and writes. She writes as if she were
running downhill. She sweats and that chills her. All her life her body temperature
has ranged between 37.1 and 37.6 degrees, which tends to produce slight shivering
fits and weak nerves. Apart from the fact that a fever is good for creative work and
erotic passion, it enables one to stay at home undisturbed. Doctors are usually
afraid to send a patient with a temperature into the whirlwind of working days.
When she has finished writing, she is hungry, thirsty and her concentration
is completely exhausted. Elza lacks the ability to keep at creative work for a long
time - sitzfleisch. Her working day lasts three hours. When Elza gets up from
her desk, her husband gets out of bed. They sit side by side on the couch in the
kitchen and think about what they will eat and what Elza will go to buy. They
usually have open sandwiches for lunch and they drink gin with grapefruit juice.
Elza has read that your stomach - what is in it - contributes eighty per cent to
how you feel. Open sandwiches and gin are food associated with celebrations.
That is why whole years in her life have seemed to her like a really good, endless
celebration. Day after day. And, as during every celebration genuinely enjoyed
and properly done - in the early evening or early morning, when the light has
long been vague and the scenery looks like a lit-up stage setting, somewhere
at the back of the tongue and on the roof of the mouth a discreet bitter taste
would appear - the taste of the end of a celebration. It had a fruity bouquet,
room temperature, full body and long tail. It woke her up in the night more and
more often: that taste of a sad end. Like when at New Year, just a few seconds
after midnight, Ian goes outside for a while with another woman and a hairy troll
crouches on Elza's chest, head and shoulders: a nightmare, and it tinkles a wave
of heat right onto her flat breasts.



On the way home in the early hours of the morning, Elza bursts into tears in the
middle of the street:
"I don't want to march. I don't want to keep marching on any more. All my life
I have done nothing but march on!"
"Then we needn't walk. I'll call a taxi," Ian tries to calm her.
"You don't understand. It's all the same. On foot or by taxi. One way or another,
all we do is just keep marching on."